Briga entre eucalipto e cana por terras em SP reacende debate sobre legislação

Há cerca de três semanas, o diretor-geral da asiática Royal Golden Eagle (RGE), Anderson Tanoto, filho do fundador do grupo que tem ativos avaliados em mais de US$ 30 bilhões, esteve no Brasil para acompanhar a disputa pela operação de tissue da Kimberly-Clark — que acabou vendida à Suzano — e avaliar a evolução de novos negócios. Só na futura operação local de papéis de higiene, a RGE está recrutando para 500 vagas.


Na ocasião, o empresário também pôde acompanhar os esforços da Bracell, produtora de celulose do grupo no Brasil, em lidar com um importante revés na Justiça. Em 4 de outubro, uma liminar concedida em ação civil pública, movida pela Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e pela Ascana (dos plantadores de cana do Médio Tietê), proibiu a empresa de comprar terras, arrendar ou firmar outros tipos de contrato no país além dos limites legais.

Com fábricas em Camaçari (BA) e em Lençóis Paulista (SP), a Bracell é uma das maiores produtoras mundiais de celulose solúvel, com operações centradas no Brasil, e inicia o processo produtivo com o plantio do eucalipto, que demanda áreas extensas.

Segundo fontes do agronegócio, sua chegada ao interior paulista, com a compra e expansão da antiga Lwarcel, gerou crescente concorrência por terras — entre o eucalipto e a cana-de-açúcar, que é predominante na região. Além disso, a agressividade das ofertas dos asiáticos, disseram essas fontes, teria contribuído para a forte valorização das propriedades rurais e atingido usinas de açúcar e energia, entre as quais a gigante Zilor.

Outra fonte lembra, contudo, que o limite de compra de terras por estrangeiros tem sido alvo de medidas judiciais similares em diferentes regiões do país, envolvendo empresas de outros setores, que não necessariamente se tornaram públicas.

Seja como for, a decisão judicial contra a Bracell chacoalhou a indústria de base florestal, em particular as multinacionais que juntas investiram bilhões de reais para produzir celulose, papel e outros produtos de madeira no país e têm planos de crescimento, apurou o Valor.

Ao mesmo tempo, uniu as empresas de capital nacional e estrangeiro do setor em torno da necessidade de modernização da legislação que trata do assunto. “Mesmo representando empresas com interesses diversos, a Ibá é a favor da modernização da legislação, bem como as companhias nacionais”, diz o presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (Ibá), Paulo Hartung.

“Trabalhamos para superar tudo o que gera insegurança jurídica, nos vários aspectos, e eles são muitos. Esse [a legislação sobre compra de terras] é um capítulo importante do livro dos nossos desafios”, acrescenta.

Embora a decisão mais recente afete diretamente à Bracell, indiretamente, aponta Hartung, os planos de outras multinacionais do agronegócio que têm investimentos executados ou planejados no país também são atingidos. “Esse não é um problema do setor de base florestal. Na soja, na cana, no milho há esse problema. É um desafio que precisa ser endereçado no Brasil, que tem uma agenda densa de desafios”, afirma.
A insegurança em relação às regras para compra ou posse de terras por estrangeiros no país não é de hoje. Há anos, a Celulose Nipo-Brasileira (Cenibra), que tem fábrica em Belo Oriente e controlada pelo consórcio JBP (Japan Brazil Paper and Pulp Resources Development), planeja dobrar a capacidade de produção de celulose no país, mas as idas e vindas da lei vão postergando o projeto. Procurada, a companhia não retornou até o fechamento dessa reportagem.

Um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), aprovado pela Presidência da República em 2010, retomou os termos de uma lei de 1971 que limitava a compra de propriedades rurais por estrangeiros a 10% da área de um município. Outros dois pareceres da própria AGU, de 1994 e 1998, iam no sentido contrário, reforçando que não poderia haver falta de isonomia entre empresas de capital nacional e estrangeiro e viabilizando uma série de novos investimentos, inclusive no setor florestal.

Com o parecer vinculante aprovado em 2010, os anteriores foram revogados. Em 2019, a MP 897, que acabou convertida em lei, a chamada Lei do Agro, permitiu o investimento estrangeiro em terras por meio de dívida, além desse limite, mas manteve o impedimento de investir via capital.

Desse mesmo ano, o Projeto de Lei 2963, do senador Irajá Abreu (PSD-TO) contemplou interesses daqueles que são favoráveis à facilitação da compra, posse ou arrendamento de propriedades rurais por estrangeiros e os limites indicados por aqueles que são críticos a uma regra mais liberal — áreas de fronteira e bioma amazônico, por exemplo, seguem protegidos. Aprovado no Senado em 2020, o projeto está na Câmara dos Deputados.
“De qualquer maneira, a solução prática ainda tem sido contratos de fornecimento com grupos nacionais, com investimento com maioria de capital nacional na aquisição da terra e parcerias”, diz o sócio fundador do Bueno e Mesquita Advogados, Francisco de Godoy Bueno. “No caso da Bracell, um dos fatores que mais assusta na liminar é que a lei é clara em criar restrições para aquisição e arrendamento, mas não restringe outras modalidades contratuais como joint-ventures ou contratos agrários sem autorização do Incra”, afirma.

Uma análise que tem sido recorrente nas discussões é o trabalho “Aquisição de Imóveis Rurais por Estrangeiros - Prós, contras, riscos e experiências internacionais”, dos especialistas do Insper Renato Buranello, Marcos Jank e Leandro Gilio.

Para eles, a legislação relacionada a propriedade e arrendamento de terras por estrangeiros no Brasil é “bastante desatualizada e não compreende as novas relações de mercado”, apontam. “As diferentes interpretações vinculativas da AGU, ao longo do tempo, evidenciam que há uma necessidade de revisão da lei, de modo que se ofereça ao mercado maior segurança e previsibilidade, necessárias para quaisquer decisões de novos investimentos”, escreveram.

“Esse tema precisa ser aprofundado. Há boas opiniões na academia, caminhando na mesma direção da percepção da Ibá de que é preciso ter um marco legal”, ressalta Hartung. Ademais, dizem fontes do setor de base florestal, valeria mais para o dono de terras no interior paulista ser remunerado pelo plantio de cana do que de eucalipto. Essa relação caberia também para soja e outros grãos, por exemplo.

Para o sócio-diretor do grupo Index, Marcelo Schmid, a decisão judicial mais recente representa mais um obstáculo ao investimento no agronegócio no país. “Além do impacto direto na Bracell, todas as empresas que tinham intenção de investir no Brasil estão preocupadas”, diz. “Essa decisão coloca em risco novos investimentos”.

Procurada, a Bracell informou que as “atividades desenvolvidas no Brasil respeitam rigorosamente a legislação” e “a liminar concedida pelo Juízo de Marília gera prejuízos não apenas à Bracell, mas a toda cadeia produtiva e ao Estado de São Paulo”. “A Bracell apresentou pedido de revogação da liminar e segue confiando no Poder Judiciário”, acrescentou.

Em nota, a Zilor disse que tomou conhecimento da ação por ser associada à Abag. “A Zilor Energia e Alimentos assim como outras empresas e entidades de diversos setores, bem como produtores rurais de médio e pequeno porte, vem sendo impactada por ações de alguns poucos grupos estrangeiros que têm agido em frontal violação da lei na aquisição e arrendamento terras na região. Entende que essa ação em nada tem a ver com o virtuoso ingresso de capital estrangeiro no país, inclusive mediante parcerias rurais que respeitam a legislação aplicável”, informou.

A Abag, que participa da ação e informalmente teria desistido do processo, disse que o assunto ainda está sendo tratado por sua área jurídica.

 

Valor Econômico