Anualmente, entre os meses de abril a setembro, diversas regiões no Brasil vivem o drama do período seco – e as consequências dele advindas. Especialmente na zona rural, os focos de incêndio aumentam em número e extensão, as denúncias de queimadas pipocam aqui e ali, a qualidade do ar piora, a agricultura sente os efeitos.
Nesse período, as queimadas se tornam mais perceptíveis pela população, não só pelo aumento do número de focos, mas também pela dispersão das cinzas e pela piora na qualidade do ar. No contexto do Noroeste Paulista, somente em julho, foram 191 ocorrências atendidas pelas companhias de Bombeiros da cidade de São José do Rio Preto e 543 pelo 13º Grupamento de Bombeiros, que abrange a região. Trata-se de número elevado se comparado a meses menos secos, como janeiro, em que as companhias foram acionadas em nove ocorrências e o Grupamento, em 31.
Mas será que todas essas queimadas são irregulares? Em princípio, é necessário distinguir a localização e origem dos focos de incêndio. Eles podem se dar em áreas vegetadas ou cultivadas. As primeiras envolvem matas, áreas especialmente protegidas, como as Unidades de Conservação, Áreas de Preservação Permanente, dentre outras. As áreas cultivadas abrangem aquelas utilizadas para plantios como o de cana, predominante na região Noroeste do Estado, e para a pecuária.
A queimada de áreas ambientalmente protegidas, sejam elas Reserva Legal, Área de Preservação Permanente ou Unidade de Conservação (como o grande incêndio recentemente noticiado que atingiu 500 hectares na região da Floresta Estadual do Noroeste Paulista, em São José do Rio Preto, já objeto de investigação por parte do Ministério Público do Estado de São Paulo) é, em regra, vedada pela legislação pátria, havendo restritas exceções. Em atividade fiscalizatória nos meses de maio e junho deste ano, a Polícia Militar Ambiental de São José do Rio Preto aplicou multas em montante de mais de R$ 170 mil por queimadas irregulares em áreas vegetadas.
O ato de provocar incêndio nessas áreas é também punível criminalmente, com reclusão de 2 a 4 anos, e multa, se doloso e, se culposo, com detenção de 6 meses a 1 ano, e multa. Ou seja, o incêndio causado sem intenção, por negligência, imprudência ou imperícia, também sujeita o causador à punição criminal.
Os recentes e alarmantes dados de queimadas no bioma amazônico e do Pantanal, movimentaram as agendas de proteção ambiental em âmbito nacional e estrangeiro. Nesse contexto, tramita na Câmara dos Deputados, desde abril deste ano, um projeto de lei que busca elevar as penas de ambas as modalidades do crime: dolosa (para 4 a 12 anos) e culposa (para 1 a 3 anos), reforçando a atenção ao tema.
No que toca às áreas cultivadas, ganham destaque no Noroeste do estado as queimadas em áreas ocupadas por canaviais de pequenos produtores ou que abastecem grandes usinas, que estão relacionados a um importante ativo econômico da região: a produção de açúcar e etanol. A queima da palha de cana é tema controvertido, cercado, muitas vezes, por desinformação. Por isso, a discussão deve se pautar em razoabilidade e parcimônia, à luz da legislação vigente.
O emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais não é absolutamente vedado e pode ser realizado desde que atenda a requisitos legais, sendo a autorização pelo órgão ambiental o primeiro deles. Essa previsão reflete a existência de práticas tradicionais e históricas de uso do fogo em alguns cultivos que, justamente por figurarem como parte do modo de produção, não foram imediatamente extirpadas do ordenamento jurídico, mas sim, regulamentadas de modo a limitar sua ocorrência, mitigar seus impactos e sujeita-las à fiscalização pelos órgãos de controle. Um bom exemplo disso é a queima da palha da cana.
Tradicionalmente empregada para a limpeza da área de cultivo para o início de nova plantação, a queima da palha de cana é atividade regulada no Estado de São Paulo. Reconhecendo ser prática tradicional, mas contemporizando-a com a indiscutível necessidade de sua substituição por técnicas mais modernas e menos impactantes, o estado conta, desde 2002, com normas que determinam a eliminação gradativa da queima da palha da cana em seu território – a chamada “queima controlada”, impondo metas anuais progressivas de eliminação de queima com base no percentual de área cortada em área mecanizável ou não mecanizável que atenda a determinados requisitos.
As metas iniciais apontavam 2021 e 2031 como datas máximas para a eliminação total da queima em área mecanizável e não mecanizável, respectivamente. Em 2007 e 2008, o Governo do Estado de São Paulo e representantes do setor sucroenergético – como a Unica e a Orplana – firmaram um protocolo de cooperação antecipando tais prazos. Posteriormente, em 2017, eles deram continuidade aos compromissos visando consolidar práticas de sustentabilidade, incrementaram as medidas compromissadas por meio do Protocolo Etanol Mais Verde.
Além da imposição de metas, a legislação restringe áreas de aplicação da queima controlada (distanciamento de predeterminado de centros urbanos, áreas indígenas, rodovias, ferrovias, aeroportos, linhas de transmissão e distribuição de energia elétrica, estações de telecomunicações e Unidades de Conservação, por exemplo).
Paralelamente à regulação, nota-se atuação constante do Estado por meio da fiscalização da queima de palha: somente nos meses de maio e junho deste ano, a Polícia Militar Ambiental de São José do Rio Preto, por exemplo, lavrou sete autos de infração relativos a uma área de 1.191,04 ha, totalizando mais de R$ 250 mil em multa. Isso sem se falar na atividade fiscalizatória do órgão ambiental (Cetesb) em toda a região, que contribui para número relevante de autuações.
O emprego de fogo de modo irregular, seja intencional ou não, merece notável preocupação. Queimadas irregulares, realizadas em áreas de mata ou áreas cultivadas, passam à margem do controle e, por isso, não estão sujeitas aos limites legais ou compensações pelos impactos que causam. O fogo pega de surpresa o poder público e a população, por vezes, alastrando-se sem controle e gerando danos ambientais e risco à saúde e segurança do entorno. Mesmo contando com a prestatividade do Corpo de Bombeiros, além da atuação das brigadas de incêndio da iniciativa privada, invariavelmente fauna, flora e outros recursos naturais são perdidos, muitas vezes de forma irreversível.
A conscientização dos cidadãos quanto a medidas de prevenção a incêndios em matas ou áreas cultivadas e também dos produtores rurais não só quanto aos danos da prática realizada em desacordo com a legislação, mas também quanto às responsabilidades a que estão sujeitos é essencial para a o cumprimento da legislação, garantia de um meio ambiente saudável e resguardo da saúde e segurança da população.
Marina Monné é especialista em direito ambiental pela PUC/SP e Mestre (LL.M) em Direito pela Georgia State University, Atlanta.