A COP28 e sua caixinha de surpresas - Por Marcelo A. Boechat Morandi

A COP28 e sua caixinha de surpresas - Por Marcelo A. Boechat Morandi

Vou destacar o que considero resultados importantes para nossa reflexão e ação.

Logo no início da COP28 foi aprovada a operacionalização do Fundo de Perdas e Danos (Loss and Damage Fund) causados pelas mudanças climáticas. As regras de acesso ao fundo ainda serão detalhadas, mas já há uma reserva em torno de US$500 milhões para início das atividades. Mesmo que não seja fácil para o Brasil acessar diretamente este fundo (que tem foco em países insulares e outros do grupo dos LDC – Least Developed Countries), cria um importante movimento global em torno do tema, abrindo outras oportunidades para os países em desenvolvimento.

Outra marca desta COP foi a grande ênfase na transformação dos sistemas alimentares (food systems), a qual suscitava apreensão pelo desvio do foco dos combustíveis fósseis e a necessária transição energética, sem deixar de lado a necessidade de ações claras para a adaptação da agricultura frente a sua vulnerabilidade ao clima e a garantia da segurança alimentar local e global, tendo como co-benefício a mitigação de gases de efeito estufa, incluindo a redução das perdas de florestas e áreas naturais.

Aconteceram centenas de eventos paralelos discutindo a temática de transformação dos sistemas alimentares, com uma diversidade imensa de visões ao redor do mundo, algumas bastante radicais para ambos os extremos, desde a produção de alimentos ser o grande vilão das mudanças climáticas, até a agropecuária não ter nenhuma responsabilidade sobre o tema.

Não assusta essa ampla gama de visões sobre a agropecuária e a produção e consumo de alimentos; é esperada para quem acompanha o debate internacional no tema. Mas, neste cenário a minha conclusão principal, ouvindo todos os lados, é que não há solução única e que os diversos modelos de produção sustentável de alimentos devem ser adotados, frente às realidades locais e nacionais. O importante é que a busca por sustentabilidade dos sistemas alimentares tem que ser uma jornada contínua, sempre na direção das soluções recomendadas pela melhor ciência disponível. Neste sentido, os sistemas alimentares devem estar em constante transformação, se movendo para a sustentabilidade em todas as suas dimensões.

As discussões formais no tema agricultura, dentro da Convenção do Clima (UNFCCC), aconteceram na agenda do Trabalho conjunto para implementação da ação climática na agricultura e na segurança alimentar, a partir de decisão tomada na COP27 de estabelecimento do "Sharm el-Sheikh joint work on implementation of climate action on agriculture and food security" (SSH-JW). O objetivo das negociações foram estabelecer as bases do plano de implementação do trabalho. 

As discussões se concentraram em seis pontos:

1. Criação de um 'road map' até a COP31 (2026), com foco em ações que promovam a implementação de projetos, inativas e políticas públicas para adaptação da agricultura às mudanças climáticas e garantia da segurança alimentar;

2. Estabelecimento das bases para elaboração de um relatório síntese anual (Synthesis Report) pelo Secretariado da UNFCCC, relatando os avanços alcançados e os 'gaps' que devem ser solucionados para implementação das ações, incluindo financiamento;

3. Estabelecimento de um calendário de workshops anuais com temas relativos aos objetivos do SSH-JW (decisão 3/CP.27), com foco na busca de mecanismos para superar os gaps relatados, assim como a discussão de novos temas e compartilhamento de experiências em implementação de ações climáticas para adaptação e resiliência da agricultura frente às mudanças climáticas;

4. Operacionalização de um Portal online para acompanhamento das ações, compartilhamento de experiências e negociação de financiamento para iniciativas nacionais das Partes (países membros) em implementação de ações climáticas para adaptação e resiliência da agricultura;

5. Elaboração das recomendações dos órgãos subsidiários (SBSTA e SBI) para tomada de decisões na COP;

6. Definições relativas ao modelo de governança do SSH-JW.

Houve avanços na construção dos elementos dos seis pontos de negociação e a elaboração de um texto base para negociação (Informal Note). Entretanto, não foi possível obter consenso mínimo relativo ao modelo de governança, o que causou a paralisação das negociações neste estágio. Esta situação adiou a decisão para a próxima reunião dos Órgãos Subsidiários (SB60, em junho de 2024, em Bonn). A conclusão da agenda na COP28 foi uma decisão procedimental (Procedural Conclusion) com a anexação do texto base para negociação futura.

Ainda na temática de agricultura, houve o lançamento de uma iniciativa da Presidência da COP com a “COP28 UAE Declaration on Sustainable Agriculture, Resilient Food Systems, and Climate Action”. A declaração traz grandes objetivos globais sobre ações para garantir a adaptação e resiliência da agricultura, assim como sua contribuição como parte da solução para a segurança alimentar, eliminação da fome e redução das emissões nos sistemas alimentares.

A declaração foi assinada por mais de 150 países até o momento, incluindo o Brasil. As informações podem ser acessadas em https://www.cop28.com/en/food-and-agriculture.

A declaração é uma ação fora da Convenção, o que sempre desperta a necessidade de atenção sobre os seus desdobramentos. Mas, há uma forte conexão com o SSH-JW, o que pode ser uma oportunidade para alcançarmos os objetivos de ações climáticas que fomentem a adaptação e resiliência da agricultura.

Enquanto país, precisamos estar atentos e continuar promovendo o avanço das práticas sustentáveis em nossa agricultura, com base na melhor ciência disponível. A Embrapa, junto com outras instituições de pesquisa e inovação, assim como em estreita parceria com as políticas públicas do Governo Brasileiro e com os parceiros do setor produtivo, tem o papel de promover as ações no nível nacional, que podem e devem ter repercussão no âmbito internacional. No caso da realidade brasileira, fica bem clara que a integração da produção de alimentos com a transição energética (“Food and Fuel”, não “Food versus Fuel”) é possível e viável. A desconexão da agropecuária com o desmatamento também é elemento central para alcance deste objetivo e recolocação do Brasil entre as lideranças da discussão climática e da produção sustentável de alimentos e outros produtos da natureza.

A decisão mais esperada da COP28

Ao longo da Conferência, houve muitas idas e vindas nas discussões e posicionamentos das Partes os diferentes temas das negociações. Entretanto, a grande expectativa estava no documento do Global Stocktake - GST, o primeiro grande balanço das NDCs em torno do compromisso de manutenção do aquecimento global em 1,5 °C.

O texto final (Draft decision -/CMA.5, documento cma2023_L17_adv) trouxe mais uma novidade nesta COP: o texto do GST é o texto final da decisão da presidência (Cover Decision do UAE).

Mas a grande surpresa está no conteúdo do texto da decisão:

Uma referência sem precedentes para a transição de todos os combustíveis fósseis (antes só havia referência a carvão mineral, mas não ao petróleo, gás natural e derivados). Também chama a atenção o avanço significativo nas expectativas de ambição para a próxima rodada de compromissos nacionais (NDCs).

Listo abaixo alguns tópicos de destaque do documento, que está disponível na íntegra em https://unfccc.int/sites/default/files/resource/cma2023_L17_adv.pdf.
> As estimativas do IPCC indicam que o aquecimento global antropogênico, causado pela emissão de gases de efeito estufa, já elevou a temperatura do planeta em aproximadamente 1,1 °C em relação aos níveis pré-industriais;

> A meta do Acordo de Paris é manter o aumento da temperatura média global abaixo de 2 °C, preferencialmente limitado a 1,5 °C, em relação aos níveis pré-industriais;

> A decisão final sobre o primeiro Balanço Global do Acordo de Paris (1º Global Stocktake) reconhece que houve progresso no alcance da meta, uma vez que as projeções de aquecimento global antes do acordo indicavam um aumento de temperatura em 4 °C até o final do século. Se as contribuições determinadas nacionalmente (NDCs) atuais forem completamente implementadas o aquecimento global estimado ficará entre 2,1 e 2,8 °C;

> No entanto, o reconhecimento acima deve ser considerado com cautela, pois se verifica que o nível da ambição das atuais NDCs é ainda insuficiente para limitar o aquecimento dentro da meta de 1,5 a 2,0 °C, expresso no Acordo de Paris;

> Ademais, existem falhas (gaps) significativas na implementação das NDCs, principalmente em função do nível insuficiente de financiamento, por parte dos países desenvolvidos aos países em desenvolvimento, voltado para combater a mudança do clima. A decisão final sobre o primeiro Balanço Global do Acordo de Paris (1º Global Stocktake) tomada na COP28, reforça a necessidade de se ampliar os meios de implementação e apoio, incluindo financiamento, para ações climáticas nos países em desenvolvimento, bem como a cooperação internacional;

> A decisão do 1º Global Stocktake também reconhece e reforça a responsabilidade dos países desenvolvidos em assumirem a liderança no estabelecimento de metas de mitigação da mudança do clima, bem como de financiamento, mais ambiciosas e abrangentes para todos os setores da economia (economy-wide) e para todos os gases de efeito estufa (gases CO2.e não-CO2, incluindo metano e óxido nitroso);

> Reconhece ainda a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos e ressalta que estes países não cumpriram seus compromissos pré-2020 de reduzir suas emissões de 25 a 40% em relação a 1990 até o ano de 2020;

> A Decisão manifesta a preocupação pelo fato do “orçamento de carbono” consistente com a consecução do objetivo de temperatura do Acordo de Paris estar atualmente reduzido, bem como exaurido;

> Reconhece que as emissões históricas líquidas acumuladas de dióxido de carbono já representam cerca de quatro quintos do “orçamento total de carbono”, ao se considerar uma probabilidade de 50% de se limitar o aquecimento global a 1,5°C;

> Reforça que a meta principal do Acordo de Paris é limitar o aquecimento global em até 1,5 °C e para isso ações de mitigação devem se concentrar no setor de energia, reduzindo-se o uso de combustíveis fósseis (incluindo a retirada de subsídios) e aumentando a participação de renováveis;

> Reforça que as ações de mitigação devem abranger outros GEEs além do CO2, em especial, o metano;

> Enfatiza a importância de envidar esforços para conter e reverter o desmatamento e degradação florestal até 2030;

> Reconhece a necessidade de mais ações e maior financiamento para adaptação às mudanças climáticas, em especial, considerando a necessidade de segurança alimentar, hídrica e ecossistêmica;

> Reforça a necessidade de financiamento para perdas e danos e do apoio financeiro de países desenvolvidos para países em desenvolvimento.

Algumas observações finais importantes sobre o primeiro Balanço Global do Acordo de Paris (1º Global Stocktake):

1. As menções a agricultura e food systems (sistemas agroalimentares) foram incluídos nos trechos que tratam de medidas de adaptação e segurança alimentar. Isto se alinha com as proposições defendidas pelo Brasil, uma vez que compreendemos que sem adaptação e resiliência nos sistemas agropecuários, o potencial para garantir a segurança alimentar e mitigar as emissões de gases com efeito de estufa nos sistemas alimentares ficará comprometido.

2. Apesar de haver menção a outros gases de efeito estufa, como o metano, nas ações de mitigação, não foram incluídas metas quantitativas. As principais fontes de emissão de metano global estão ligadas à exploração de combustíveis fósseis e tratamento de resíduos. Entretanto, para o Brasil, a pecuária se destaca como maior emissor deste GEE. O contínuo aprimoramento da pecuária com ganho de eficiência e redução de emissões, além do aprimoramento das métricas de cálculos dos sistemas produtivos e de rastreabilidade da pecuária são essenciais.

3. Alguns posicionamentos principais do Brasil ao longo das negociações foram contemplados, incluindo: i) o compromisso de limitar o aquecimento global em até 1,5 °C (“Missão 1,5 °C), e não 2,0 °C; ii) ênfase nas ações de mitigação em combustíveis fósseis e na transição energética justa; iii) reconhecimento de que os países desenvolvidos não cumpriram suas metas climáticas pré-2020. iv) fortalecimento dos princípios basilares da Convenção (multilateralismo, o princípio das ‘responsabilidades comuns, porém diferenciadas’ - CBDR, equidade e transição justa).

4. É fundamental para o Brasil envidar esforços para conter e reverter o desmatamento e degradação florestal e desconectar nossas cadeias produtivas do desmatamento ilegal, além de promover incentivos para a manutenção da vegetação nativa em pé para as áreas passíveis de desmatamento legal. Para tal, novas ferramentas de agregação de valor aos produtos livres de desmatamento, pagamento por serviços ambientais, desenvolvimento de cadeias de bioeconomia da floresta e outras estratégias devem ser incentivadas.

Para concluir

A agricultura e a segurança alimentar foram destaque nesta COP. Garantir a resiliência e adaptação da produção de alimentos, fibras e bioenergia sustentáveis diante do cenário climático instável é o foco de nossa atuação como instituição de pesquisa em agricultura tropical. A Embrapa tem apoiado as negociações do Brasil neste tema, além do empenho diário em suas pesquisas para aprimorar a agricultura tropical e seus indicadores.

Para o Brasil cumprir suas metas de redução de emissões de sua NDC é fundamental a redução/eliminação do desmatamento, e o contínuo aprimoramento de sua matriz energética renovável.

Por fim, "desfossilizar" a economia. Esse é o grande desafio. Mais de 70% das emissões de gases de efeito estufa vêm do uso de fontes fósseis de energia, globalmente.

A agricultura de baixa emissão de carbono e livre de desmatamento é parte da solução. Temos a incrível capacidade de produzir e preservar. Temos a oportunidade única de produzir alimentos sem competir com a produção de biocombustíveis e bioenergia, tudo integrado e em um modelo circular de economia. Temos que continuar avançando fortemente na redução da intensidade de carbono ("Pegada de Carbono") em nossas principais cadeias e promover a inclusão produtivas dos pequenos e médios produtores em diferentes modelos de produção.

Somos um dos poucos país (senão o único) que pode perfeitamente conviver em harmonia com todos os modos de produção (desde commodities de exportação até a bioeconomia inclusiva da floresta), de forma que se complementem e sejam inclusivos e justos para todos.

Esse é o nosso desafio enquanto nação. Ainda temos tempo para construir pontes até a COP30 no Brasil, em Belém do Pará, coração da Amazônia Brasileira.

*Marcelo A. Boechat Morandi Engenheiro agrônomo com mestrado e doutorado pela UFV e University of Guelph do Canadá. Experiência como docente na FESURV/UniRV-GO e na PUC-Campinas. Atua como pesquisador da Embrapa desde 2001. Coordenou o portfólio de projetos de manejo racional de agrotóxicos da Embrapa e liderou o Grupo de Trabalho em Controle Biológico do COSAVE. Membro do GT RenovaBio-Política Nacional de Biocombustíveis e representa a Embrapa na CNA, bem como na Comissão Executiva Nacional do Plano ABC+. Exerce a função de conselheiro do COSAG da FIESP. Agora, ocupa o cargo de chefe da assessoria de relações internacionais da Embrapa.
 

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