Guerra acelera transição energética no mundo e Brasil pode ter ganhos com energias renováveis com investimentos de R$ 250 bilhões em dez anos
A invasão da Ucrânia pela Rússia deverá acelerar o cenário de transição energética sob o contexto das mudanças climáticas e a busca por maior segurança nas fontes de suprimento. O Brasil desponta como principal potência agroenergética, podendo obter ganhos no curto e longo prazos. Mais de R$ 250 bilhões devem ser direcionados nos próximos dez anos a investimentos em geração e transmissão de energias renováveis.
No curto prazo, os países europeus estão redefinindo políticas energéticas. A Alemanha pode abandonar a desistência de usinas nucleares, enquanto a Espanha pode prolongar por alguns anos o uso de térmicas a carvão. Nesse cenário, as metas de redução de poluentes globais de alguns países podem aumentar no curto prazo. Isso cria oportunidades para o Brasil, cujo índice de renovabilidade na matriz elétrica está em 83%, bem acima dos 29% registrados no resto do mundo.
Uma das principais operadoras de telecomunicações do país, a Claro tem diversificado sua matriz buscando reforçar a presença de fontes limpas. Até julho de 2023, a expectativa é ter 80% de seu consumo abastecido por energia renovável, sendo 65% de fonte solar, 21% de biogás, 8% de fontes hídricas e 6% de cogeração. Investimentos em geração distribuída solar são o carro-chefe. Hoje são 66 usinas fotovoltaicas instaladas, número que crescerá até 103 nos próximos meses.
A participação em geração faz com que a empresa avalie gerar certificados de energia renovável e comercializá-los ou estudar se esses créditos podem ser usados em outras filiais do grupo mexicano. “Brasil tem uma matriz muito limpa e há muitas opções sobre a mesa. Nossa matriz no México está consolidando os dados das operações no mundo e iremos ver o que podemos fazer”, diz o diretor de infraestrutura da Claro, Hamilton Silva.
O avanço das fontes intermitentes, como solar e eólica, na matriz também deverá levar à adoção de sistemas de armazenamento de energia e a um novo sistema de precificação da água armazenada nos reservatórios das hidrelétricas. Esse cenário combina com o avanço da geração distribuída, que em 2031 poderá representar 7% da carga do país. Isso vai criar novos modelos de negócio e operação para transmissoras e distribuidoras. “Esse avanço das renováveis na geração de energia cria inequações. Primeiro, tem um problema de qualidade de frequência, variação de voltagem. Em alguns momentos, há excesso de oferta de carga e não é fácil regular. O uso de bateria, de armazenamento, passa a ser essencial”, diz o presidente da ISA Cteep, Rui Chammas.
A necessidade de aperfeiçoamentos regulatórios sobre armazenamento também é um ponto sobre a mesa. Uma discussão é sobre novos modelos de contratação de energia, dando preferência a soluções sistêmicas e não à compra de energia de determinada fonte, como feito desde 2004. “Eu consigo prever uma dinâmica maior nesse mercado de armazenamento quando o Brasil passar a efetivamente precificar requisitos sistêmicos e deixar de comprar apenas MWh de fonte X ou Y. Um leilão de solução sistêmica pode trazer essa dinâmica. Estamos precisando disso e estamos atrasados. Temos lutado para que isso fosse feito ano passado, mas a conjuntura não permitiu”, afirma a presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), Elbia Gannoum. A opinião é compartilhada por empresas com interesse na tecnologia.
E“Na Itália, armazenamento é uma realidade. Comercializamos recentemente na Itália 1.600 megawatts (MW) de forma mais competitiva que fontes de geração. No Brasil, também há espaço para isso, nos leilões de contratação de potência, poderia haver neutralidade tecnológica e haver disputa entre geração e armazenamento”, diz Roberta Bonomi, presidente da Enel Green Power.
A regulação dos serviços ancilares (armazenamento) ainda é discutida em Brasília. “A ampliação do mercado livre exigirá uma regulação ainda mais dinâmica”, afirma Fernando Elias, diretor de regulação e comercialização da Casa dos Ventos.
Surgem também discussões de um sistema de precificação da água armazenada nos reservatórios das hidrelétricas, que funcionam como gigantes baterias de água, função não colocada no modelo. “Esse serviço ancilar se torna importante porque estamos migrando para uma matriz complexa com fluxos de energia multidirecionais e fontes intermitentes, que trazem maior incerteza de geração e preço”, avalia Alexandre Uhlig, diretor de assuntos socioambientais e sustentabilidade do Instituto Acende Brasil. Em dez anos, a energia solar deve crescer 350% e a eólica deve dobrar, o que exigirá um sistema mais flexível e as hidrelétricas ganham relevância.
Oportunidades bilionárias também surgem em novos nichos como o hidrogênio verde. A União Europeia pretende produzir dez milhões de toneladas do insumo a partir de fontes renováveis até 2030 e importar dez milhões de toneladas, e o porto de Roterdã deve ter papel importante na movimentação. O maior terminal portuário da Europa tem participação no porto de Pecém (CE). A curva de adoção da nova tecnologia, hoje ainda cara, pode ficar mais rápida por conta dos investimentos europeus.
No Brasil, as empresas já começam a se movimentar. “Temos conversado com mineradoras, fabricantes de fertilizantes, petroquímicas e outras. Estamos desenvolvendo estudos e a viabilidade econômica desses projetos. Assinamos acordo de cooperação em 2021 com o governo do Ceará”, afirma Mauricio Bähr, presidente da Engie Brasil. A empresa trabalha com meta de 4 gigawatts (GW) em projetos de hidrogênio verde no mundo em 2030. Um quarto pode ser do Brasil.
A Vibra também está de olho nesse mercado e pretende fortalecer a área de hidrogênio verde em seu portfólio diante da vantagem competitiva do Brasil em fontes renováveis. Os custos de produção aqui são um dos menores do mundo, cerca de cinco vezes menores que na Europa. “Novas oportunidades de negócios estão sendo mapeadas e temos expectativas promissoras para os próximos anos”, afirma Wilson Ferreira Jr, CEO da Vibra.
Outra tendência são os projetos híbridos, que mesclem solar e eólica ou a instalação de usinas solares flutuantes em lagos de hidrelétricas. “Já demos um passo com um projeto pioneiro de hibridização e queremos avançar, ainda mais com a sinergia de transmissão entre eles”, afirma o presidente da Auren (ex- Cesp), Fabio Zanfelice.
As usinas eólicas offshore (alto-mar) são outra tendência que deve ganhar espaço no país. “Temos possibilidade de instalar 50 Itaipus no mar. É um pré-sal azul”, diz o ministro de Meio Ambiente, Joaquim Leite. O potencial do país no setor é de 700 GW. As petroleiras, que têm negócios no pré-sal e metas de descarbonização global, deverão ser as principais interessadas nesse novo negócio que pode destravar mais de US$ 100 bilhões.
Já há sinais da inflexão na política energética mundial. Há duas semanas, a União Europeia divulgou um programa de € 220 bilhões para reduzir a dependência energética do bloco com a Rússia. As iniciativas englobam mais eficiência energética, ampliação do uso de energia solar e eólica e aceleração da adoção de hidrogênio verde. Isso abre um leque de oportunidades para o Brasil, que poderá reforçar sua posição de potência em fontes renováveis. Com sol, vento, recursos hídricos e o pré-sal, o país deve continuar atraindo bilhões de reais em investimentos no momento em que o setor elétrico se transforma.
VALOR ECONÔMICO (30/05)