Pesquisador defende que País adote estratégia de longo prazo para explorar o potencial da ciência e da biodiversidade do Brasil, a maior do mundo
O engenheiro agrônomo e ex-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Maurício Antônio Lopes, defende que o Brasil, o país com a maior diversidade biológica do planeta, adote uma estratégia de longo prazo para a bioeconomia, área em que a nação pode se consolidar como potência global. Segundo Lopes, que hoje é pesquisador visitante do Instituto Internacional de Análise de Sistemas Aplicados, na Áustria, é preciso investimentos e agendas de longo prazo, coordenadas entre vários atores, para que isso ocorra.
“O Brasil tem experiência, capacidade e diversidade biológica inigualável para se destacar na nascente bioeconomia. A infraestrutura de pesquisa e inovação, o ambiente regulatório, os investimentos privados e o incentivo público precisam ser estimulados e coordenados para que o País alcance o papel de destaque que lhe cabe. Se o fizermos, a bioeconomia poderá consolidar o Brasil como uma potente economia do conhecimento natural no futuro”, disse em entrevista exclusiva ao Estado.
Segundo Lopes, a bioindústria tem potencial de se tornar a "maior do planeta" nos próximos anos. Ele enumera exemplos como a transformação de derivados da cana-de-açúcar em garrafas PET e a criação de estofados biodegradáveis para carros. Cita também a possibilidade de usar biomateriais para reparar tecidos ósseos e queimaduras na pele, a produção de biofármacos para enfrentar doenças e o desenvolvimento de inimigos naturais para controlar pragas da agropecuária.
Na entrevista, o pesquisador falou ainda sobre mudanças nos padrões de alimentação, na importância de o Brasil manejar de forma inteligente suas riquezas naturais para alavancar a economia e destacou a necessidade de o “consumo sem limites” ser reduzido. "Muitas saídas estão sendo experimentadas e outras surgirão à medida em que a sociedade se convença de que não há outro caminho para o futuro senão o da sustentabilidade", disse.
Como o senhor enxerga o futuro da alimentação no planeta nos próximos 20 anos? Fazendas de insetos ou carnes produzidas em laboratórios, por exemplo, podem ganhar espaço e ser alternativas reais para o fornecimento de alimentos a uma população crescente?
Nossas refeições passarão por grandes mudanças. E muitas poderão tomar feições um tanto radicais, já que praticamente todos os estudos de futuro indicam que a distância entre ficção científica e realidade seguirá se encurtando. Avanços em áreas inusitadas, até agora consideradas especulativas, podem se tornar realidade em breve. Fazendas de insetos e carne sintética são exemplos até pouco tempo considerados só no campo da ficção e que praticamente já se tornaram realidade.
Quando refletimos sobre as pressões que o crescimento populacional produzirá no futuro, normalmente pensamos no volume de alimentos necessários e formas sustentáveis de provê-los. Isso é importante, mas é também necessário considerar que a relação alimento-nutrição-saúde tenderá a ganhar cada vez mais força.
Por que o sr. faz esse diagnóstico?
Por uma razão simples: a sociedade moderna investiu muito, e erradamente, no paradigma da cura, mais que no hábito da prevenção. Embora importantíssimos, os avanços da medicina nas últimas décadas nos conduziram a um paradigma que já não se sustenta. Os custos médicos se elevaram enormemente e poucos podem contar com seguros de saúde adequados.
E o bem-estar e a prevenção de doenças e males diversos estão quase sempre relacionados ao suprimento adequado de alimento seguro, nutritivo e saudável. Hipócrates, o pai da medicina, exortava há 2.500 anos: “faça do seu alimento o seu medicamento", argumentando que “as doenças originam-se da natureza e por ela podem ser evitadas quando se estabelece um equilíbrio entre meio ambiente, alimentos ingeridos e espirito".
A estreita relação que os alimentos têm com a saúde e o bem-estar tem sido tratada em profundidade cada vez maior pela ciência. Creio que teremos muitas novidades nesse campo no futuro.
Existem países em que a obesidade é hoje um problema maior do que a fome em relação à má nutrição. O Brasil é um deles, segundo a FAO/ONU. No entanto, ainda há cerca de 5 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar por aqui - o equivalente à população da Irlanda. O que fazer para conciliar essas duas agendas e atingir o objetivo de reduzir a fome e a má nutrição?
A má nutrição em todas as suas formas - subnutrição, deficiências de micronutrientes, excesso de peso e obesidade - tem crescido em todo o mundo. A FAO/ONU estima que 26% das crianças são raquíticas, 2 bilhões de pessoas sofrem de uma ou mais deficiências de micronutrientes e 1,4 bilhão de pessoas estão com excesso de peso - dos quais 500 milhões são obesas. O custo estimado do impacto da má nutrição alcança 5% do PIB global, equivalente a US$ 3,5 trilhões por ano, ou U$ 500 por pessoa/ano, uma indicação de que os países precisam dar grande atenção a esse tema.
Onde o Brasil está nessa discussão?
Do ponto de vista de capacidade de produzir alimentos para a sua população e excedentes para exportar, ajudando a reduzir a insegurança alimentar no mundo, o Brasil está muito bem. Estamos entre os líderes globais da produção de alimentos e só temos brasileiros em condições de insegurança alimentar porque ainda há deficiência de políticas públicas de garantia a acesso a alimento seguro e nutritivo, o que o País pode facilmente alcançar se esforços mais coordenados e inteligentes forem realizados.
Os avanços em tecnologia agropecuária, ciência e tecnologia de alimentos precisam continuar para garantirmos que os produtos sejam feitos de forma segura e sustentável, e tenham qualidades e funcionalidades que promovam a saúde e bem-estar das pessoas. Inovações na diversidade, qualidade e funcionalidade dos alimentos poderão proporcionar melhor qualidade de vida para a população, reduzir custos com doenças associadas à má alimentação, e atender à crescente demanda dos consumidores por alimentos saudáveis, práticos e sensorialmente atraentes.
Os pesquisadores brasileiros precisarão estar cada vez mais atentos às demandas de consumidores, produtores e indústrias por alimentos mais diversificados, biofortificados, com qualidades nutricionais e funcionais diferenciadas e cientificamente comprovadas.
Estimativas indicam que cerca de 30% dos alimentos produzidos são perdidos. Com isso, vão embora também recursos naturais como água, além de trabalho e dinheiro. Como frear o modelo de consumo "sem limites" que hoje impera em algumas nações e segmentos da sociedade?
Esse é um dos grandes problemas do século. Uma bomba-relógio que precisa ser desligada com urgência para não comprometermos o futuro. O modelo econômico presente, baseado no consumo sem limites, está elevando os níveis de poluição e o desgaste das reservas de recursos essenciais — solo, água e biodiversidade — a patamares extremamente perigosos.
A sociedade se comporta como se os recursos do planeta fossem ilimitados, consumindo biomassa, combustíveis fósseis e minerais em volumes que hoje alcançam três vezes o volume extraído em 1970. E as projeções de uso de recursos naturais em 2050 vão muito além da capacidade do planeta. É, portanto, fácil concluir que o atual modelo de desenvolvimento é insustentável e precisa ser com urgência reinventado.
E o que pode ser feito para alterar esse panorama?
É exatamente por isso que os temas agricultura, alimentação, nutrição, saúde e clima - todos interdependentes -, são cada vez mais tratados de forma integrada, para almejarmos um padrão de desenvolvimento sustentável no futuro. Muitas saídas estão sendo experimentadas e outras surgirão à medida em que a sociedade se convença de que não há outro caminho para o futuro senão o da sustentabilidade. Alguns países já criminalizam a obsolescência planejada, técnica usada para reduzir deliberadamente a vida útil dos produtos, forçando o consumo.
A economia compartilhada cresce em todos os lugares, com escritórios, automóveis, bicicletas, estadias, roupas e entretenimento que servem a múltiplos usuários. E medidas fiscais inovadoras, como taxação do consumo exagerado e punições proporcionais à produção de resíduos, rejeitos e poluentes nas residências e indústrias tenderão a ganhar espaço nas agendas de líderes e legisladores no futuro.
E, muito importante, é preciso que as mudanças tecnológicas venham acompanhadas de mudança cultural e social. Uma grande promessa é a economia circular, que nasce inspirada na própria natureza, onde nada é perdido ou desperdiçado. A longevidade e a resiliência dos ecossistemas derivam exatamente dos ciclos naturais de reciclagem de recursos, como numa floresta, em que múltiplas espécies interagem e se alternam de forma harmônica. Por mimetizar a natureza, a economia circular poderá ajudar a consolidar na sociedade um modelo mais inteligente de produção e consumo, baseado em três verbos: reduzir, reutilizar e reciclar.
Quão preparado entende que o Brasil está para lidar com a bioeconomia e com inovações de base biológica em um planeta com recursos escassos, ainda dependente das substâncias não-renováveis e com população em crescimento?
Instituições como a Embrapa, as universidades e empresas estão participando das verdadeiras revoluções emergindo da pesquisa biológica, que a cada dia amplia a nossa compreensão de mecanismos complexos em plantas, animais e microrganismos. Muitas inovações de base biológica já induzem as indústrias alimentar, farmacêutica, química, da saúde, da energia e da informação a se agregarem de forma nunca imaginada.
As fronteiras entre negócios tradicionalmente distintos já desaparecem, criando uma grande convergência na direção do que promete ser a maior indústria do planeta: a bioindústria. Bioindústrias já transformam derivados da cana-de-açúcar em garrafas PET, fabricam estofados biodegradáveis para carros e biossensores para monitorar poluição; aplicam biomateriais para reparar tecido ósseo e queimaduras na pele, desenvolvem biofármacos para enfrentar doenças, produzem inimigos naturais para controlar pragas e usam microrganismos para degradar resíduos.
Aviões já realizam os primeiros voos comerciais utilizando bioquerosene como combustível. E é crescente a produção de cosméticos e essências a partir da nossa biodiversidade. O Brasil desenvolve há décadas um bioinsumo de grande impacto econômico e ambiental, formulado com bactérias que fixam o nitrogênio do ar.
Os resultados da tecnologia de fixação biológica de nitrogênio, desenvolvida pela Embrapa e aplicada às lavouras de soja impressionam. Graças a ela, mais de 30 milhões de hectares dessa leguminosa cultivados a cada safra não precisam receber fertilizante nitrogenado. A economia para os agricultores (e para o País) é de mais de R$ 40 bilhões a cada ano.
O sr. enxerga uma estratégia nacional?
O que fizemos até agora não é mais que a ponta do iceberg considerando o potencial da ciência e da biodiversidade brasileiras. É uma pena que o Brasil, o País com a maior diversidade biológica do planeta, ainda não tenha uma estratégia robusta e de longo prazo para a bioeconomia. Com a crescente sofisticação da pesquisa nesse campo do conhecimento, precisaremos de mais investimento e agendas robustas e de longo prazo, coordenadas entre vários atores, o que ainda não é prática muito comum no Brasil.
Aqui há um importante dever de casa a fazer: o País tem experiência, capacidade e diversidade biológica inigualável para se destacar na nascente bioeconomia. A infraestrutura de pesquisa e inovação, o ambiente regulatório, os investimentos privados e o incentivo público precisam ser estimulados e coordenados para que o país alcance o papel de destaque que lhe cabe. Se o fizermos, a bioeconomia poderá consolidar o Brasil como uma potente economia do conhecimento natural no futuro.
O que falta para que a gestão dos serviços ambientais seja reconhecida e - por que não - estimulada financeiramente para que haja maior interesse em sua promoção?
Se manejada de forma inteligente, a nossa riqueza natural poderá alavancar a nossa economia, a nossa imagem e atratividade e a disseminação de progresso de forma mais justa por todo o nosso imenso território. Obviamente que não alcançaremos esse objetivo dilapidando o nosso patrimônio natural ou tentando protegê-lo com cercas de arame farpado. Conhecer e manejar esta imensa riqueza, de forma arguta e pragmática, é um imperativo para conquistarmos um futuro melhor para o Brasil.
Um passo importantíssimo foi dado com a aprovação do novo Código Florestal Brasileiro, que protege a biodiversidade e as fontes e cursos d'água nas propriedades rurais privadas. É algo inédito no mundo. Com essa lei, o Brasil está, na verdade, construindo um ativo e se diferenciando. O Código Florestal já destaca o Brasil como nação capaz de realizar uma gestão eficiente e diferenciada das suas propriedades rurais. Outro desafio importante para o Brasil é, sim, avançar no entendimento e na gestão dos serviços ambientais e ecossistêmicos que os recursos naturais proveem para a sociedade.
Além de alimentos, água e matérias-primas, a natureza também nos provê serviços como regulação do clima e dos ciclos hidrológicos, oferta de diversidade biológica para múltiplas bioindústrias, fixação de carbono, polinização, reciclagem dos nossos resíduos, recreação, dentre muitos outros. E como todas as opções alternativas de uso da terra e dos recursos naturais envolvem interesses muitas vezes antagônicos e, por isso, cada vez mais difíceis de gerenciar, a quantificação e o pagamento por serviços ambientais se torna mas cada vez mais necessária.
Precisamos avançar com a discussão e a implementação de políticas públicas que garantam que a utilidade e o valor dos recursos naturais não sejam ignorados ou subvalorizados e os esforços daqueles que contribuem para a sua manutenção e fortalecimento possam ser reconhecidos pela sociedade. Com políticas públicas adequadas poderemos ampliar não só a proteção dos nossos ativos ambientais, mas também sua contribuição para geração de mais benefícios econômicos e progresso para a sociedade.
*Maurício Antônio Lopes, engenheiro agrônomo e ex-presidente da Embrapa