Pois bem, estive recentemente conversando com um produtor de cana de açúcar do estado de São Paulo sobre os desafios da safra atual e também sobre a deterioração das relações entre produtores e usinas em um ambiente de baixa confiança.
Em meio a essa conversa ele me falou sobre o tema que é título deste artigo: cana obrigada. Me contou, em breves palavras que, na época dos primeiros engenhos de açúcar, onde também surgiram os primeiros produtores de cana de açúcar, as terras adquiridas por estes produtores nas regiões do engenho deveriam fornecer a cana exclusivamente ali, sendo chamada de cana obrigada.
Achei o termo interessante e decidi procurar mais sobre ele. Encontrei diversos materiais e, em um deles, o termo aparecia de maneira muito clara e detalhada. Seu título fala sobre a “subordinação dos lavradores de cana aos senhores de engenho”. O artigo analisa os mecanismos de poder utilizados pelos donos de engenho para subordinar os produtores de cana e manter a supremacia no conjunto da produção.
A cana obrigada era, conforme dito anteriormente, a cana produzida por produtores em terras da região do engenho e, do total de açúcar produzido, o engenho ficaria com no mínimo 50% para pagamento do processamento.
O artigo traz também outros pontos interessantes, como um texto histórico onde um escritor alerta para a importância de ser construída uma boa e verdadeira relação com os produtores baseada em confiança e prosperidade, pois estes eram fundamentais ao sucesso dos engenhos e seus proprietários.
Bem, agora que estudamos o passado, vamos entender o presente.
Estamos no inicio da economia verde, de baixo carbono e com uma pauta presente de ESG (sigla em inglês para meio ambiente, social e governança) e, nestas questões, a cadeia de cana de açúcar é extremamente eficiente. Pra se ter uma ideia, a cada 80 toneladas de cana produzidas por hectare são retiradas do ar 60 toneladas de CO2. A descarbonização acontece realmente no campo e é gigantesca.
Alinhados neste caminho e nos benefícios à saúde que esta economia baseada em baixo carbono pode trazer, o Governo Federal aprovou a lei do Renovabio, programa que visa reconhecer os benefícios ambientais da cadeia do Etanol (na verdade de todos os biocombustíveis) face a dos combustíveis fósseis, uma vez que esta é de menores emissões de poluentes pois, como dito acima, a área agrícola, tira CO2 do ar e o fixa na biomassa gerando assim um saldo positivo de carbono em relação a gasolina e diesel, por exemplo.
Atrelada a esta lei e suas regras de comercialização muito bem estabelecidas, chega o momento de remunerar ao produtor por este crédito verde.
Por incrível que possa parecer, as usinas produtoras de Etanol ofereceram 50% do valor do crédito pois, segundo elas, a cana não faz parte deste ganho uma vez que quem gera o crédito verde é apenas o Etanol. E como as usinas já compram a cana do produtor e já é posse dela, ela insere este volume no programa do Renovabio de maneira obrigada, sem mesmo precisar da aprovação do produtor.
50% pela cana obrigada! Mais de 500 anos depois!
Apesar dos estudos técnicos apresentados pelos produtores, as usinas declinaram de uma negociação coletiva e estão buscando produtores individualmente, tendo ai um desproporcional desequilíbrio de forças, subordinar os produtores de cana por força de contrato oferecendo um bônus deste crédito de 50%. Ou seja, o produtor será presenteado com metade do que é dele.
Falei de ESG rapidamente, mas volto a ele para chamar a atenção que o S, de social, é diretamente relacionado também ao produtor de cana e as relações que a cadeia tem com ele, quer seja usina, indústrias, distribuidores ou mesmo clientes finais. E a letra de E, de environment, que é meio ambiente, está ligada ao BIO do biocombustível que é o etanol. Este BIO é onde a descarbonizaçao acontece. E o G, de governança, remete a como estas relações são geridas verdadeiramente, por exemplo verificando in loco, para os acionistas, se a forma como a alta gestão diz se relacionar com os produtores acontece realmente. Como falar de ESG e deixar de lado estes pontos?
Passado e presente tratados, o que podemos esperar do futuro se a cadeia sucroenergética seguir neste mesmo caminho de décadas:
Em minha visão, há solução sim para essa crise de confiança que, infelizmente, não está apenas no Renovabio, mas também no Consecana e nas negociações locais individuais.
Precisamos ampliar o valor dessa cadeia produtiva trabalhando em economia colaborativa, trazendo melhores ganhos e compartilhando de maneira justa até chegar aos produtores, retomando assim a atratividade e lucratividade da cultura.
Mas o principal é retomar o orgulho do produtor e fazê-lo sentir-se parte desse negócio sucroenergético que é um orgulho nacional.
Além disso, a sociedade não aceita mais quem pratica no presente um passado que não condiz com o futuro que se deseja.
A cana não é obrigada, para a cana se diz: Obrigado!
*Denis Arroyo Alves - Diretor Executivo da Orplana
Organização das Associações dos Produtores de Cana do Brasil
Denis Arroyo Alves, graduado em Zootecnia pela UNESP de Botucatu, MBA em Gestão Empresarial FGV, Especialização em Gestão Avançada pela Fundação Dom Cabral / Insead – França e Especialização em Mentoria pela FGV. Experiência em cargos executivos,habilidade na formação e desenvolvimento de equipes de alta performance, Competência em desenvolvimento de novos modelos de negócios e produtos e recentemente vem desenvolvendo programa de Mentoria High Impact Leader para formação de líderes de destaque nas empresas e sociedade.