Vem aí uma “nova gasolina”, de melhor qualidade e rendimento, a partir de agosto/2020. Ela tem suscitado muitas dúvidas e, obviamente, a objeção em relação ao fato de que terá maior custo, afinal o consumidor já paga um valor alto para adquirir o combustível no Brasil. Neste artigo vou tentar explicar, em detalhes, com algum embasamento técnico, como é que se formula gasolina e quais as mudanças que estão em curso. Bem-vindo ao dossiê da gasolina.
Vou me valer do conceito expresso pelo meu ex-colega Marco Antônio Farah no livro intitulado Petróleo e seus Derivados (2013): “a gasolina automotiva é constituída por hidrocarbonetos parafínicos, olefínicos, naftênicos e aromáticos entre 4 e 12 átomos de carbono com faixa de ebulição entre 30 e 220 °C.” Usualmente, no entanto, a composição mais comum compreende entre 5 e 10 átomos de carbono. Essa corrente de hidrocarbonetos é mundialmente conhecida como nafta. No Uruguai, por exemplo, se você quiser abastecer seu carro com gasolina, pedirá por nafta.
Você deve imaginar que é a partir do refino do petróleo que obtemos as moléculas que compõem a gasolina. Uma parcela dela vem também do refino do gás natural, dos líquidos de gás natural (LGN), e das centrais petroquímicas, como subproduto de processo. O que nós temos, em última análise, são diversas correntes de naftas que misturadas compõem um combustível apto a se queimar nos motores de ciclo Otto. Em tese, toda e qualquer gasolina é dita formulada, seja numa refinaria ou fora dela, pela mistura de variadas correntes de nafta.
No motor Otto, a mistura ar/combustível é injetada na câmara de combustão, sendo em seguida pressionada por um pistão, o que eleva a temperatura do conjunto de moléculas ali confinadas. O combustível deve resistir ao ponto máximo de compressão sem entrar em combustão, que só deve ser ativada pelo centelhamento da vela (figura 1). Se a explosão ocorrer antes do tempo ou não ocorrer após o centelhamento significa que o combustível é ruim/inadequado.
Figura 1 – Ilustração dos quatro tempos do Ciclo Otto
Como mensurar se o combustível é bom ou ruim neste quesito de resistência à compressão? Pela octanagem. Sente-se, respire fundo, que lá vem uma pequena explanação sobre a química envolvida, a qual tentarei ser o mais didático possível.
A octanagem é uma medida de resistência à compressão em um motor padrão e condições pré-definidas, que não vêm ao caso detalhar. Resumidamente, o comportamento de um combustível neste “standard motor” é avaliado pelo som que ele emite durante a queima, a uma dada taxa de compressão e velocidade de rotação do motor, entre outras condições padronizadas. Em velocidade de rotação mais branda, de 600 rpm, se obtém o chamado Research Octane Number (RON), enquanto em um teste um pouco mais severo, a 900 rpm, temos o Motor Octane Number (MON). A média aritmética destes dois valores (RON+MON) é chamada de Índice Antidetonante (IAD) e nos dá uma noção mais completa a respeito da qualidade antidetonante de um combustível, simulando condições de dirigibilidade brandas e severas.
Para traduzir o resultado num valor numérico, foi necessário criar-se um padrão arbitrário. Duas moléculas foram escolhidas para tal: o 2,2,4 trimetilpentano, conhecido como iso-octano, um hidrocarboneto ramificado de 8 carbonos (daí o termo octanagem) e o n-heptano, um composto linear de 7 carbonos.
O iso-octano tem uma boa queima no motor, resiste bem à compressão, ao tempo adequado para a vela centelhar e incitar a explosão dentro da câmara de combustão. A ele foi atribuído de forma arbitrária que o número de octano ou octanagem vale 100. Já o n-heptano ao ser colocado no motor não resiste à compressão, a molécula tende a se quebrar e entrar em combustão antes de o pistão atingir seu ponto máximo, gerando uma sobrepressão indevida que leva o motor a um desgaste, perda de eficiência e até mesmo a sua quebra em casos extremos. É a famosa “batida de pino” do motor. Por essas características, o n-heptano recebe “nota zero” na escala de octanagem.
Misturando diferentes proporções de iso-octano e n-heptano, testando-as no motor, é possível se montar uma escala, de zero a cem (figura 2), utilizada para comparação com outros combustíveis. Assim, se determinada amostra de combustível é testada no motor e tem octanagem 80, quer dizer que ela se comporta de forma semelhante a uma mistura de 80 % de iso-octano com 20 % de n-heptano. Vale lembrar que a gasolina é uma mistura complexa contendo diversos hidrocarbonetos, com diferentes arranjos, ela não é essa mistura simples de dois componentes. Eles servem apenas de base de comparação.
Figura 2 – Escala arbitrária de octanagem
Uma curiosidade é que há substâncias que resistem à compressão de forma superior ao iso-octano, inclusive, como o benzeno, por exemplo, cujo MON é de 114,8. Talvez você esteja pensando que “então o benzeno é um componente excelente para a gasolina”. Em parte é. Moléculas derivadas do benzeno, contudo, geram mais fuligem durante a queima, além de afetar a estabilidade química do combustível, o que não é desejável. A queima de moléculas aromáticas (derivadas do benzeno) não é completa em motores comuns, ainda que sejam excelentes na questão da octanagem.
Grosso modo, moléculas cíclicas (naftênicas), aromáticas, ramificadas ou com ligações duplas (olefínicas) são resistentes à compressão, mas emitem alguma fuligem e são quimicamente mais suscetíveis à oxidação. Moléculas lineares, especialmente as maiores, são ruins em relação a octanagem, mas mais estáveis quimicamente. Essas características são particulares de cada molécula. Observe no quadro 1 o valor da octanagem de algumas substâncias, que corroboram com a minha explanação.
Quadro 1 – RON e MON de alguns hidrocarbonetos
Fonte: a partir de FARAH, 2013.
Voltemos ao tópico original, se você resistiu até aqui…
Para que as especificações técnicas exigidas pela legislação, expressas na atual resolução ANP 807/2020, sejam atingidas na gasolina é necessário que se misture uma série de correntes de naftas, advindas de diferentes processos de refino do petróleo e ou do gás natural. Essas correntes utilizadas têm características específicas, cada qual com uma propriedade útil na composição final do combustível. A lista de exigências de qualidade contida na resolução da ANP é grande, mas relembro que o foco aqui será abordar somente aquelas que mudarão a partir de agosto/2020.
Até então, o formulador de gasolina precisava registrar em laudo apenas o valor do MON. A partir de agosto, será necessário reportar também o valor da RON (figura 3).
Figura 3 – Mudanças na especificação do MON e RON
Fonte: Resolução ANP 807/2020
Isso traz algum ganho? Sim, o formulador precisará atender a um RON mínimo, o que deverá trazer um ganho no Índice antidetonante (IAD) (figura 4), isto é, ganha-se na octanagem global, que se traduz em maior eficiência e rendimento do combustível no motor. Tal mudança permite também harmonizar a legislação vigente com as especificações adotadas por nossos vizinhos do Mercosul, bem como por países da União Europeia.
Figura 4 – Comparação da atual e da futura especificação para MON, RON e IAD
Fonte: elaboração própria.
A grande mudança, porém, está na massa específica. A nova resolução exige que a gasolina comum e a premium tenham no mínimo massa específica de 715 kg/m3 (figura 5). Hoje, não há uma exigência mínima para o revendedor, apenas para o produtor/importador de gasolina A (aquela sem etanol), sendo comum encontrar em gasolinas importadas valores abaixo disso. Obviamente você deve estar se perguntando qual será o ganho? Quanto maior a massa por unidade de volume, maior será a densidade energética entregue, a energia ofertada pelo combustível ao motor. Em outras palavras, melhor será o rendimento do combustível no motor, o que permite rodar um pouco mais a cada litro consumido.
Figura 5 – alterações na regulação da massa específica da gasolina
Fonte: Resolução ANP 807/2020
Adicionalmente, dificulta-se a formulação de gasolina comum pela utilização de naftas de menor densidade, característica observada corriqueiramente nas correntes importadas no país, com maior teor de compostos voláteis, que levam a perda de desempenho e eficiência dos motores, traduzidos em aumento de consumo do combustível. A adoção do RON e da massa específica mínimos deve reduzir de 3 a 5% o consumo de combustível nos motores, segundo estudos relatados pela ANP.
As mudanças que estão por vir vão elevar o preço da gasolina em alguns centavos na saída da refinaria, bem como do produto importado, que deve se refletir em parte ao consumidor final. Isso porque as correntes de nafta a serem utilizadas para se atingir RON e massa específica mínimos exigidos são provenientes de processos mais caros (figura 6).
Figura 6 – Massa específica, RON e MON de diversas correntes de nafta
Fonte: adaptado de FARAH, 2013
Estima-se que a elevação do preço da gasolina A importada ou produzida nas refinarias seja de 4 a 7%. Eu já imagino o que você está pensando: “o ganho percentual no rendimento será menor do que o observado no aumento de preço da gasolina A”. Lembre-se, porém, que a composição de preços da gasolina comum tem outros componentes (etanol, impostos, margens de distribuição e revenda), no final das contas o consumidor deverá ser beneficiado. Um exercício nos ajuda a entender melhor.
Um aumento de 4 a 7% na gasolina A importada ou refinada no Brasil se traduz em 7 a 13 centavos a mais no preço dela. Contudo, há que se considerar que a gasolina comum contém 73% de gasolina A e 27% de etanol anidro, portanto, o aumento efetivo será de 5 a 10 centavos na gasolina comum. Vamos considerar o valor mais alto, de 10 centavos de aumento para fins de simulação. No outro lado, uma redução de 3 a 5% no consumo equivalente de gasolina comum representa um ganho médio de 0,48 km/L num automóvel que faz 12 km/L. Assim, espera-se que o consumidor saia ganhando ou na pior das hipóteses tenha um empate financeiro (quadro 2).
Quadro 2 – comparativo de custos e rendimentos estimados para a gasolina no país
(dados hipotéticos)
Fonte: elaboração própria.
Diante do exposto, teremos no Brasil uma gasolina de melhor qualidade, que já é inclusive exportada, com ganhos em termos de rendimento e especificação técnica mais avançada para atender aos futuros motores que estão por vir. É a gasolina made in Brazil sendo agora utilizada por nós.
Marcelo Gauto é Químico industrial e especialista em petróleo e gás. Escreve na primeira sexta-feira de cada mês a Coluna do Gauto.