Grãos e cana-de-açúcar: concorrência por terras - Por Roberto Rodrigues

Nos últimos anos, tem crescido a “disputa por terras” entre canaviais e grãos, especialmente soja e milho. A melhor remuneração pela produção dos grãos tem sido o fator determinante dessa disputa, que aquece os custos de arrendamento de terras por parte das usinas e/ou de fornecedores de cana que gostariam de ampliar suas áreas de cultivo.

Entre as justificativas para isso, o que mais chama a atenção é o desenvolvimento tecnológico. Nos últimos 15 anos, a produtividade por hectare dos grãos cresceu bem mais que a da cana. Soja teve um desenvolvimento de 2% por ano, milho, de 2,7%, e a cana ficou estável. Em boa parte, porque os mercados cresceram mais para os grãos, sobretudo por causa da demanda de proteína animal dos países emergentes ou em desenvolvimento, em especial na Ásia. As populações desses países e sua renda per capita aumentaram mais que as dos ocidentais, de modo que o consumo de carnes (bovina, suína, de aves e, mais recentemente, de pescado) cresceu mais do que o consumo de açúcar. Esse fato exigiu a expansão da área plantada com soja e milho para a indústria de rações. 
 
Nos últimos 30 anos, saltamos de 9,6 milhões de hectares de soja para 39,2 milhões, um crescimento de 309%. No caso do milho, a tecnologia da segunda safra, antiga safrinha, que hoje responde por três quartos do volume produzido, foi ainda mais notável: de 1 milhão de hectares, fomos para 15 milhões.  E a cana saltou de 4,2 milhões de hectares para 10,0 milhões, ou apenas 136% a mais.

Aliás, a prática da segunda safra é relativamente recente, quase inteiramente desenvolvida neste século XXI, mas foi espetacular. Variedades mais precoces de soja permitiram a ampliação da “janela” para a segunda safra de milho, bem como para o trigo e outras culturas de inverno, como aveia, centeio, sorgo. Até mesmo o algodão passou a ser cultivado como segunda safra, depois da soja. 

Esse fator ainda deu outro salto com o lançamento do programa de Integração Lavoura-Pecuária em 2005: os agricultores plantam a soja em setembro/outubro, colhem em fins de janeiro, e plantam milho junto com sementes de pastagem em seguida. Depois de colhido o milho, o pasto cresceu, e o mesmo terreno serve para engorda de gado e consequente produção de carne. 

Em suma, até 3 “cultivos” no mesmo ano, 3 faturamentos, enquanto a cana fica 5, 6, 7 anos ou mais no terreno onde foi plantada como cultura única. O seu custo de plantio por hectare é muito maior que o dos grãos, embora feito uma vez só por todo o ciclo. Mas o tratamento anual das soqueiras tem um custo por hectare aproximado ao do plantio de grãos.

Com todos esses fatos, o mercado de grãos ficou muito dinâmico, com grande quantidade de empresas fornecendo insumos (sementes, fertilizantes, defensivos, máquinas e equipamentos) de forma competitiva. Feiras agropecuárias espalhadas pelo País todo, a partir do exitoso modelo da Agrishow, que acontece em Ribeirão Preto desde 1994, expõem anualmente inovações tecnológicas estimulantes, e os produtores rurais as incorporam rapidamente, sempre melhorando a performance e o faturamento.
 
E, na outra ponta, dezenas de tradings multinacionais ou brasileiras, indústrias de transformação e cooperativas eficientes se encarregam de comprar os produtos em um cenário de preços determinados por Chicago e suportados por um câmbio que tem sido favorável ao exportador.  Há, portanto, um mercado trepidante e cheio de variáveis que exige do agricultor um conhecimento atualizado de tudo o que acontece, inclusive quanto a políticas públicas, para tomar decisões adequadas a todo momento. Pode, inclusive, decidir a hora de vender sua safra ou estocá-la, à espera de melhor remuneração. 

Os dados a esse respeito são impressionantes. Há 15 anos, foram exportados, em grandes cifras, 9,3 bilhões de dólares com o complexo da soja e 7,8 bilhões de dólares com o complexo sucroalcooleiro. No ano passado, foram 48 bilhões de dólares com a soja, 417% a mais, e 10 bilhões de dólares com os derivados de cana, só 32% a mais. Os preços reais também subiram mais nos grãos do que na cana.
 
No caso da cana, sequer existe mercado. O produtor de cana só pode vender sua safra para uma unidade industrial que fique a uma distância economicamente viável. E o preço é determinado pelas informações que a unidade industrial oferece para os cálculos do Consecana. Que é um excelente modelo para as demais cadeias produtivas serem mais equilibradas, com os preços variando em função do produto final.
 
No entanto, o Consecana carece de revisão, modernização. Desde sua instituição, logo após o Plano Collor extinguir o IAA, muita coisa mudou em tecnologia e na diversificação dos produtos industriais obtidos a partir da cana, como é o caso da eletricidade em cogeração. A ideia de revisão do Consecana existe desde sua criação, mas isso nunca acontece, em detrimento dos produtores de cana independentes, o que é outro elemento a considerar na disputa por terras.

E tem ainda um novo componente, que é o etanol de milho. A competitividade do etanol de milho em relação ao de cana tem permitido uma valorização adicional do milho no mercado interno. O aumento do número de indústrias de etanol de milho tende a tomar ainda mais terra para o nobre cereal, especialmente onde é possível fazer duas safras de grãos (soja e milho).

Finalmente, há a questão da interferência governamental nos preços dos combustíveis, como aconteceu no desastrado governo Rousseff. Para impedir a explosão da inflação, naquele governo, a Petrobras vendia gasolina importada por um preço menor do que tinha pago lá fora. Isso destruiu o valor da Petrobras, mas também afetou duramente o setor sucroenergético devido à paridade do etanol em relação à gasolina. Houve uma perda de renda generalizada na área industrial, e isso influiu negativamente no desenvolvimento tecnológico canavieiro. Claro, sem renda, ninguém investe em novas tecnologias, a não ser naquelas que reduzam} custos. 
 
Por isso, enquanto as inovações no segmento graneiro avançaram vigorosamente – com novas variedades de soja, milho e algodão sendo lançadas todos os anos, aumentando a produtividade agrícola e reduzindo custos –, a cana ficou parada, com poucas modernizações.

Muita água vai ainda “rolar debaixo dessa ponte”. Com certeza os preços dos grãos, superinflacionados por causa da pandemia, cairão no futuro, resgatando parte da vantagem comparativa que a cana teve no passado, e reduzindo essa disputa por terras. Mas pode ser que eles não voltem tanto, e esse resgate pode demorar a acontecer. Enquanto isso, a demanda por milho para etanol continuará crescendo internamente.
 
Por todas essas razões, pelo menos dois pontos deveriam ser considerados pelo setor: o primeiro é investimento pesado em tecnologia, que permita inovações capazes de melhorar a competitividade da cana com os grãos. E o segundo é ampliar a renda do fornecedor de cana, com a revisão do Consecana. Por mais amor que ele tenha pelos canaviais, em algum momento, poderá mudar de atividade.
 
*Roberto Rodrigues - Coordenador do Centro de Agronegócio da FGV
 
 
REVISTA OPINIÕES ED MAIO-AGOSTO OpAA72
 
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