O Brasil viveu nos últimos anos uma crise política sem precedentes. Mas foi só em maio de 2018, quando a crise deixou as instituições e atingiu diretamente o bolso do brasileiro que o país, enfim, sentiu o peso de ter de parar por conta da greve dos caminhoneiros e ter mais uma vez a economia debilitada.
Foram momentos de reflexões, tanto para a sociedade que se mobilizava para apoiar ou não os movimentos, quanto para os órgãos governamentais, que ampliaram as discussões e interações com vistas a buscar alternativas para o setor.
A crise política foi agravada com a atual situação econômica e social brasileira em razão dos impactos da pandemia do coronavírus no país. Com isso, é natural que o governo enfrente (ainda mais) temas que podem destravar investimentos e reaquecer a economia. O setor de abastecimento de combustíveis, dado seu impacto na economia em diversos aspectos, não é diferente.
É fato que não há uma fórmula mágica para resolver os impasses do coronavírus e as crises dos últimos anos. Mas dessas discussões surgiram dois caminhos. No longo prazo, restou claro que não é possível a infraestrutura de um país continental ser tão dependente do transporte por caminhões. A solução, contudo, demanda investimentos que, infelizmente, são inconcebíveis em um cenário de economia deprimida como a brasileira.
É nesse contexto, portanto, que surge uma solução de médio prazo: garantir uma estabilidade e, mais do que isso, previsibilidade, de como o mercado se comportará na venda dos combustíveis, ante as oscilações características do setor. Se não é possível dispensar o transporte pela via terrestre, deve-se, pelo menos, garantir que o mercado não entre em colapso em razão do alto custo do combustível.
Desde a greve dos caminheiros, é de ampla divulgação a transformação do setor de combustíveis. Como consequências, as alterações legislativas, regulatórias e setoriais serão responsáveis por proporcionar grandes oportunidades para os players do mercado.
Dentre os temas que estão na agenda de discussões, a possibilidade de venda direta dos combustíveis ganha força. A atual regulação setorial obriga que a comercialização de todo e qualquer combustível passe por um agente distribuidor. É um intermediário que, na prática, encarece o preço final ao colocar mais uma camada de lucro e transporte do combustível, da refinaria para a distribuidora e só depois para o revendedor.
No início de junho, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) aprovou resolução com diretrizes para a permissão da venda direta do etanol hidratado combustível pelas usinas produtoras aos revendedores varejistas, popularmente chamados de posto de gasolina. De acordo com o Ministério de Minas e Energia (MME), a Resolução, que encontra-se em análise interna do órgão antes da sua publicação, estabelecerá: “isonomia concorrencial no aspecto tributário e preservação da arrecadação de tributos de alíquota específica (ad rem) em relação à comercialização do etanol hidratado com distribuidores de combustíveis; facultatividade de comercialização nessa modalidade pelos agentes interessados; e a isonomia na definição dos padrões e especificação de qualidade do produto final ao consumidor”.
As discussões, favoráveis ou contrárias, demonstram a necessidade de se analisar a questão como forma de garantir a maior segurança jurídica aos possíveis investimentos.
No último ano, um passo relevante foi dado na Comissão de Minas e Energia (CME) da Câmara dos Deputado. Foi aprovado o Projeto de Lei (PL) nº 9.625/2018, que trata sobre políticas de incentivos a microdestilarias, estas consideradas com produção de até 10 mil litros de etanol combustível por dia. A normativa prevê a permissão da venda direta do etanol hidratado da produtora para o posto de gasolina e para o consumidor final, sem passar pela distribuidora, hoje intermediário necessário na cadeia.
Essa possibilidade de comercialização – ressalta-se que é uma possibilidade para a usina produtora, não representa uma obrigatoriedade – poderá ter o condão de diminuir o preço final do produto ao consumidor final, pauta tão necessária diante dos últimos aumentos dos preços dos combustíveis.
Além desse importante avanço, foi aprovado pela mesma Comissão o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 978/2018. Este, por sua vez, susta dispositivo de Resolução da Agência Nacional do Petróleo (ANP) – notadamente, o art. 6º da Resolução ANP nº 43/2009 – para possibilitar a comercialização do etanol combustível de qualquer usina produtora direto com o posto de gasolina.
Esse PDC tem origem no Senado Federal, Casa Legislativa que promoveu rápida tramitação do Projeto por reconhecer a importância da abertura e desconcentração do mercado. Agora, cabe à Câmara dos Deputados, a apreciação do Projeto.
Dos temas que afetam diretamente a permissão da venda direta, as alterações tributárias geram questionamentos e importantes discussões. O motivo é simples: parte relevante da arrecadação se dá nas distribuidoras e, por isso, hoje o poder público não pode abrir mão desse intermediário na cadeira produtiva. Dois são os principais pontos de impacto: (i) sobre o recolhimento das contribuições para Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep) e Contribuição par Financiamento da Seguridade Social (Cofins); e (ii) no Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Assim, visto que para o etanol hidratado o recolhimento é realizado tanto pela usina produtora quanto pelo distribuidor, com a retirada deste último da cadeia de fornecimento, poderia haver impactos para a arrecadação estatal e comprometimento da concorrência dos players.
É neste cenário que a Nota Técnica do Ministério da Economia nº 13/2019 reitera posicionamento da pasta anterior. Neste Relatório, dispõe-se exaustivamente sobre os aspectos tributários, concorrenciais e regulatórios da possibilidade de venda direta do etanol hidratado. A recomendação técnica do ministério da Economia é de que seja implementada a monofasia da contribuição para PIS e Cofins, concentrando a arrecadação no elo da produção.
Por tudo isso, é possível concluir que, hoje, a venda direta de combustível é o caminho fundamental – e mais avançado – para baratear o preço final para o consumidor e, assim, evitar uma nova crise. Os sinais, tanto do Congresso quanto do governo, já são claros sobre a convicção da efetividade da venda direta. O próximo passo, agora, é eminentemente tributário e legislativo, ao garantir a arrecadação. Será uma maneira de, ao mesmo tempo, enxugar os custos com distribuidoras sem prejudicar a receita dos Estados.
Os últimos boletins da ANP mostram que a qualidade do combustível no Brasil, seja em postos de bandeira branca ou fidelizado, é boa e estável no país. O que é preciso é garantir que seja, também, vendida a um preço justo. Ninguém, nem governo, nem estados, nem produtores, nem caminhoneiros, nem consumidores podem suportar mais um colapso no setor, somado aos impactos sem precedentes do coronavírus.
Marcos Joaquim Gonçalves Alves e Bárbara Teles são advogados e consultores