Nos últimos 50 anos, a concentração de CO2 na atmosfera saltou de médias entre 250 e 300 ppm – detectadas nos últimos 800 mil anos – para marcas acima de 400 ppm. A correlação entre esses dados e o aumento da temperatura global é quase que direta e todos os anos vivenciamos novos recordes e aumentos da frequência de ocorrência de eventos extremos.
Ainda mais crítica é a situação apontada pelos modelos climáticos, que indicam que já ultrapassamos em cerca de 100 ppm as concentrações de CO2 que seriam as mais prováveis para conseguirmos conter a mudança do clima. Dessa forma, é fundamental que identifiquemos fontes renováveis de carbono e energia capazes de não só substituir as fontes fósseis, mas também de corrigir os danos já provocados por essas.
Os biocombustíveis são candidatos valiosos para cumprir esse papel e esse artigo visa discutir como poderemos atingir os objetivos atuais de descarbonização por meio da utilização desses combustíveis renováveis. O Brasil, por ser um player importante no setor, tem papel fundamental neste sentido e deve aproveitar as oportunidades que estão sendo colocadas pelas grandes discussões mundiais relacionadas às mudanças climáticas.
A biomassa pode ser vista como nada mais do que uma bateria, que acumula a energia dos fótons solares sob forma de energia química. A análise minimalista do seu ciclo de produção e uso geraria uma soma zero. Por exemplo, a cana de açúcar é resultado da fixação de CO2 . Ao queimá-la, diretamente ou a partir do etanol, gera-se energia e libera-se CO2 , que é o mesmo que tinha sido fixado. Como saldo, tem-se a energia, vinda do sol. Excepcional, se fosse simples assim. Para entendermos essa conta de forma correta, é preciso analisar as etapas de produção desta biomassa e, para isso, pode-se usar as ferramentas de Avaliação de Ciclo de Vida (ACV), que permitem contabilizar todos os impactos ambientais associados a um processo produtivo.
Nessa conta, são considerados inúmeros fatores, entre eles as mudanças de uso da terra, tanto diretas quanto indiretas, que são realizadas ao se implantar uma cultura agrícola. Quando se aplica a metodologia para analisar o impacto do etanol de primeira geração (1G), verifica-se que é possível produzir quantidade de energia equivalente à da gasolina com aproximadamente 20% das emissões de CO2.
Esse resultado já é muito bom, mas pode ser ainda melhor. O Brasil possui vantagens comparativas importantes quando consideramos o potencial de adensamento energético não utilizado, bem como a posição geográfica privilegiada, com alta incidência solar. Para aproveitar o enorme potencial que se apresenta, deve-se maximizar o uso dos combustíveis renováveis e, para isso, é necessário melhorar a razão entre a energia produzida e a energia empregada no processo.
Atualmente, a cana de açúcar é produzida no país com produtividade média de 80t/ha, utilizando mecanização imperfeita, grandes volumes de fertilizantes e defensivos agrícolas, e demandando a renovação frequente das lavouras. Com o uso da biotecnologia, é possível, por exemplo, produzir plantas mais resistentes a pragas e doenças, e microrganismos inoculantes capazes de fixar nitrogênio
e solubilizar minerais, além de muitas outras soluções que podem contribuir para aumentar a razão entre energias mencionada.
As técnicas de melhoramento genético também vêm permitindo o desenvolvimento de diversas variedades de cana energia, capazes de multiplicar a produtividade e reduzir os custos. A macaúba, por exemplo, tem mostrado um alto potencial de produtividade em solos exauridos e zonas de baixa pluviosidade. Isso tudo mostra que podemos melhorar as nossas baterias naturais, aplicando menos energia para carregá-las.
No campo da transformação, o que fizemos até hoje com o etanol 1G, usando o açúcar solúvel, foi essencialmente a apropriação de um processo natural, com pouca introdução de tecnologia. Entretanto, a maior parte do açúcar da cana está no bagaço e na palha, sob a forma de celulose. A conversão desse material é a missão das usinas de segunda geração, que operam uma tecnologia que começa a ser dominada e que tem enorme importância geopolítica, pois todos os países do mundo possuem substratos capazes de serem convertidos em etanol 2G. Portanto, consolidar essa tecnologia será essencial para quebrar as resistências em relação aos biocombustíveis, que boa parte do mundo, hoje, vê como uma fonte que pode competir com a produção de alimentos ou gerar emissões em quantidades semelhantes às provocadas pela queima do petróleo, em função do alto uso de insumos e combustíveis fósseis na produção agrícola, além das mudanças de uso da terra.
A evolução natural no sentido de maximizar a produção energética é a conversão cada vez maior das usinas de etanol em biorrefinarias, que produzem muito mais do que biocombustível. A biomassa da cana, por exemplo, produz cerca de 20 TWh/ano de bioeletricidade, uma fonte estável e despachável, diferente da energia gerada por fontes eólicas ou solares. Isso é muito pouco, comparado ao potencial desta fonte. A adoção da cana energia, o uso de caldeiras mais eficientes e o recolhimento da palha podem levar facilmente à geração equivalente a uma Itaipu (cerca de 100 TWh/ano).
Outra usina desse porte poderíamos ter com o uso do biogás. Para cada litro de etanol produzido são gerados cerca de 12 litros de vinhaça e uma grande quantidade de restos industriais. A conversão desse material em biogás representaria a produção anual de 39 bilhões de metros cúbicos, que contém incríveis 86 TWh de energia. Sabendo disso, o que está nos impedindo de alcançar tais patamares de aproveitamento energético?
A resposta é simples. Fazer isso é caro e, atualmente, o investidor não está seguro de que terá o retorno esperado. A solução deste quadro, portanto, acaba dependendo de medidas governamentais, com políticas públicas de incentivo. É exatamente nesse ponto que entra o RenovaBio, uma surpreendente contribuição brasileira para a redução dos efeitos das mudanças climáticas. A partir de um mecanismo de mercado, as emissões evitadas se tornarão um título, o CBio, que será negociado no mercado da bolsa de valores. Em um primeiro momento, as distribuidoras de combustíveis serão obrigadas a adquirir CBios para descarbonizar uma parte do volume de combustíveis fósseis comercializados, mas espera-se que, mais adiante, tal crédito seja visto como um ativo de alto valor.
Os acontecimentos recentes no mercado das moedas virtuais e a complexidade dos produtos financeiros permitem vislumbrar a existência de grande interesse pelos CBios nos mercados secundários. Diferentemente de moedas virtuais, que praticamente não possuem lastro e dependem majoritariamente de uma confiança etérea, o CBio terá lastro. Mais precisamente, ele terá um anti-lastro. Ele representará unidades formadoras de gases de efeito estufa, algo que está presente na atmosfera e que, portanto, diz respeito a todos os países do mundo. O volume desse lastro é brutal, pois corresponde aos cerca de 100 ppm de CO2 que estão em excesso na atmosfera.
Nesse cenário, tudo muda. O produtor de biocombustível começa a ser um minerador de CBio e terá todo o interesse de produzir o máximo possível desses ativos financeiros a partir dos seus sistemas produtivos. Quando as tecnologias de captura de CO2 se consolidarem, será possível, ainda, utilizar a energia renovável para sequestrar o carbono e esse processo, em grande escala, poderá no futuro até mesmo valorizar as reservas de carbono fóssil, uma vez que sua utilização poderia ser compensada pela captura equivalente.
Isso não é sonho ou ilusão e o Brasil poderá ser um ator importante para o desenvolvimento dessas tecnologias. Nas últimas décadas, a nossa nação se tornou uma potência científica, o que pode ser observado pelo grande número de artigos científicos publicados. Entretanto, o nosso sistema desacoplou esse motor de geração do conhecimento das engrenagens de produção de trabalho e, principalmente, de inovação. Existe um enorme fosso separando o que sabemos do que fazemos. Com o RenovaBio, uma ponte deverá ser construída para ligar esses dois mundos, alicerçada no desejo de amplificar a produção de CBios. Essa talvez seja a maior oportunidade de desenvolvimento com a qual o Brasil já se deparou.
*Gonçalo Amarante Guimarães Pereira é Professor Titular do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB/Unicamp). Engenheiro Agrônomo pela UFBA (1987), Mestre em Genética pela ESALQ/USP (1990), Doutor em Genética Molecular pela Universidade de Düsseldorf, Alemanha (1994) e Pós-Doutoramento pelo Instituto de Química da USP em 1996. Coordenador de um dos maiores laboratórios da universidade, o Laboratório de Genômica e BioEnergia (LGE). Foi co-fundador da empresa GranBio, em 2011, da qual foi Cientista-Chefe de 2012-201, quando assumiu a Direção do CTBE, permanecendo no posto por 1 ano. É Membro da Academia de Ciências do Estado de São Paulo, representante da Área Industrial do Comitê Científico do Centro Internacional de Engenharia Genética e Biotecnologia - CIEGB/MCTIC desde 01/02/2017; Membro Titular da Área Industrial do Centro Brasileiro-Argentino de Biotecnologia - CBAB desde 12/05/2017; Participante do Grupo de Trabalho de Políticas em Biotecnologia e Recursos Genéticos junto à coordenadoria técnica do CNPq (COBRG) para o biênio 2018/2019; Membro Titular da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio na qualidade de representante do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços – MDIC para o período de 30/05/2018 a 30/05/2020. Coordenou e participou de alguns dos maiores projetos de pesquisa do país, muitos em parceria com empresas, foi agraciado com diversos prêmios e hoje possui 32 patentes (4 internacionais), 6 registros de software concedidos pelo INPI, 136 artigos científicos e 9 capítulos de livro publicados.
*Tamar Roitman é Pesquisadora na FGV Energia. Engenheira química formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestranda do Programa de Planejamento Energético (PPE), da COPPE/UFRJ. Possui pós-graduação em Gestão de Negócios de Exploração e Produção de Petróleo e Gás, pelo Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (IBP). Experiência como analista de orçamento na Vale SA e como estagiária na empresa Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil SA (TBG). Como
pesquisadora da FGV Energia, atua nas áreas de petróleo e biocombustíveis.
*Maria Carolina Grassi é pesquisadora colaboradora no Laboratório de Genômica e BioEnergia da UNICAMP desde 2013. Bióloga pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (2004), Doutora em Genética e Biologia Molecular pela (UNICAMP) (2012) e pós-graduada em MBA na área de Gestão de Negócios pelo Ibmec (2018). Possui uma carreira desenvolvida na área de inovação, novos negócios e P&D para a produção de biocombustíveis e químicos renováveis a partir de biomassa vegetal. Atuou como pesquisadora e coordenadora associada das divisões Agrícola e Molecular do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE/CNPEM), além de ser responsável pelas relações institucionais do laboratório. Trabalhou ainda como pesquisadora e gestora de projetos em grandes empresas como Braskem (2010-2013) e GranBio (2013-2017) e como diretora científica da SGBio Renováveis (Joint venture entre as empresas GranBio e Rhodia) (2016-2017) na área de produção de bioquímicos e biocombustíveis de primeira e segunda geração. É autora de importantes artigos na área de biotecnologia e inventora de patentes depositadas em diversos países.