Protecionismo argentino no açúcar - Por Elizabeth Farina

Protecionismo argentino no açúcar - Por Elizabeth Farina

Os produtores de açúcar argentinos querem a reserva do seu mercado interno. Essa foi a mensagem por eles transmitida ao governo em agosto, durante o 4º encontro da Mesa Sucroalcooleira do Ministério da Agroindústria. A defesa dessa posição não causaria prejuízo relevante para o Brasil, caso estivéssemos almejando acesso apenas ao mercado doméstico deles, mas não é o caso.

O pano de fundo da discussão sobre o fim do regime que atualmente sobretaxa a importação de açúcar no Mercosul não é o mercado doméstico argentino, que consome 1,7 milhão de toneladas de açúcar, mas o acesso a inúmeros outros mercados de consumo, tais como o europeu, de 18 milhões de toneladas, ao latino-americano, de 8,6 milhões de toneladas (considerando-se somente México, Colômbia, Venezuela, Equador e Peru),ao indiano, de 27 milhões de toneladas, e ao sul-africano, de 1,9 milhões de toneladas, com base nos dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA).

Essa é uma visão reduzida de todo o potencial de acesso a mercados, com os quais negociamos o aprofundamento e a desgravação de acordos comerciais, seja em acordos de livre comércio ou de preferências comerciais, que desperdiçamos no momento. Mantendo o açúcar como o único item completamente excluído da integração regional no Mercosul, somos feridos de morte em nossas ambições negociais com outros blocos e nações.

É evidente que nunca serão fáceis as negociações para derrubada de barreiras tarifárias erigidas por parceiros comerciais ao açúcar, um dos produtos agrícolas mais protegidos do mundo. Contudo, desde 1994, os países do Mercosul deveriam estar comprometidos, pelo acordo de complementação econômica nº 18, a promoverem a liberalização gradual do comércio intra-Mercosul para os produtos do setor açucareiro, até a completa eliminação de barreiras, prevista naquele momento para 2001. Não é preciso dizer que isso não evoluiu.

Por outro lado, a neutralização das distorções causadas por assimetrias entre as políticas nacionais para o setor açucareiro, que era o leitmotiv nos discursos dos negociadores argentinos em favor do adiamento da integração, teve avanços concretos devido às ações de fomento pela Casa Rosada na última década.

Com a edição da lei 26.093/06, complementada pela lei 26.334/08, foi criado o Regime de Promoção à Produção de Etanol na Argentina, que tem um modelo tributário próprio, incentivos e, mais importante, a previsão de mistura compulsória do produto à gasolina (5%, a princípio, depois 7%, 10%, e hoje, a 12%).

O regime prevê a devolução antecipada do imposto de valor agregado sobre os bens e obras de infraestrutura relacionados à produção, que também pode ser revertido em amortização no imposto de renda. As destilarias também são isentas da taxa de infraestrutura hídrica, do imposto sobre combustíveis líquidos e do imposto de transferência sobre a importação de diesel.

Essas medidas, somadas à regra de tabelamento mensal de preços de acordo com os custos de produção das matérias primas de origem do etanol (cana ou milho), possibilitaram um incremento médio nas vendas internas do produto de 48,9% de 2010 a 2015. Vale ressaltar que no último ano 40% do volume total produzido foi a partir do processamento de cana.

O fator que limita a competição da cana com o milho na produção de etanol na Argentina é o mesmo que gera o receio da abertura do mercado local aos demais países do Mercosul: uma deficiência crônica de escala, influenciada por condições edafoclimáticas restritivas e agravada por enormes distâncias entre produtores e mercados consumidores.

Por outro lado, graças à sobretaxa à importação que existe há mais de 20 anos, a produção de açúcar cresceu 83% entre 1990 e o fim dos anos 2000. Ficou estagnada a partir de 2010, devido às condições do mercado internacional e ao excesso de oferta doméstica, mas deve crescer nos próximos anos, pelas previsões do USDA.

Segundo o documento Cadeias de Valor, do Ministério de Fazenda e Finanças Públicas da Argentina, que trata da realidade do setor sucroalcooleiro do país, as províncias de Tucumán, Jujuy e Salta são as mais dinâmicas. Elas respondem por 99,5% da produção nacional e exercem forte pressão sobre o Executivo e o Legislativo para que siga emperrada a completa integração dos mercados do Mercosul.

Por incrível que pareça, a Lei do Açúcar (24.822/97) determinou que as tarifas de importação a produtos açucareiros não podem ser extintas "enquanto subsistir a assimetria provocada pela mistura compulsória de etanol à gasolina no Brasil". Criando ainda maior constrangimento para as relações diplomáticas dos países do Mercosul, o Congresso da Argentina aprovou a lei 25.715/03, estabelecendo que as barreiras comerciais ao açúcar somente poderão deixar de existir no país se houver a edição de uma outra lei que assim o determine.

As duas leis foram vetadas pelo Executivo, porém mantidas pelo Legislativo. Isso é mostra da bem articulada ação desses interesses na Argentina. Dada a relação de proximidade do presidente Macri com o setor, será preciso uma atitude mais contundente e estratégica da diplomacia brasileira para que não se perpetue a situação atual.

Temos que negociar com eficiência para que um mercado não prioritário limite as nossas possibilidades de acesso no mundo. A diplomacia brasileira colocou o açúcar na mesa com a União Europeia. Os produtores argentinos recorreram aos ministros de governo, congressistas e membros da diplomacia para dizer que não querem que isso avance. Também se recusam a abrir o mercado para o Brasil. Mas disso nós já sabemos há tempos. O que eles talvez não saibam ainda é que queremos negociar e existe margem para isso.

Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 20/10/2016.