Roleta russa - Por Arnaldo Luiz Corrêa

Circulou rapidamente nos grupos de WhatsApp durante a semana a previsão de safra de cana de uma trading de açúcar que assustou alguns participantes. O número divulgado pela empresa mostrava uma queda brusca na produção do Centro-Sul para 530 milhões de toneladas de cana, uma contração de 12.5% em relação à safra 2020/21, recém findada. Se essa previsão se confirmar, terá sido a maior queda de produção de cana dos últimos 20 anos, sendo apenas superada pela redução de mais de 22% ocorrida na safra 2000/2001 provocada pelos preços baixos do açúcar no ano anterior, que obrigaram as usinas a abandonar os cuidados na lavoura e a renovação anual de 15% do canavial por completa falta de caixa.

A notícia pode ter contribuído para o desempenho do mercado futuro de açúcar em NY durante a semana. O vencimento maio/21 encerrou a sexta-feira cotado a 16.95 centavos de dólar por libra-peso, apreciando 23 pontos em relação à semana passada, equivalentes a 5.00 dólares por tonelada. Pode ter contribuído, mas não necessariamente deve. Há tempos o mercado tem sido alimentado por negociações de robô, algoritmos, entre outros agentes artificiais e a evolução de preços nem sempre segue a lógica dos fundamentos.

Para se ter uma ideia, os fundos especuladores aumentaram suas posições compradas em 50.300 lotes na semana, segundo dado divulgado pelo CFTC (Commodity Futures Trading Commission), agência independente do governo dos Estados Unidos, que regula os mercados de futuros e opções das commodities. O volume comprado equivale a 2.56 milhões de toneladas de açúcar e no período (terça a terça) o mercado subiu 118 pontos. Ou seja, para cada 100,000 toneladas compradas pelos fundos o mercado subiu um dólar por tonelada. Deu oportunidade para muitos produtores fixarem preços de venda.

Para reforçar esse sentimento altista, um experiente agrônomo acredita que a seca do ano passado e as chuvas erráticas do verão, além do nível pluviométrico abaixo da média em março e abril vão contribuir para uma quebra expressiva de 50 milhões de toneladas no Centro-Sul, corroborando com as previsões da citada trading. Os altistas se abraçam e comemoram.

Há vários pontos que continuam me intrigando, entre eles estão: a) se o mercado físico realmente percebe que vai haver falta de açúcar no mundo, por que os spreads não estão refletindo isso?; b) a Índia já registrou 5.2 milhões de toneladas de açúcar para exportação, sendo que 2/3 desse volume já estão exportados; c) o consumo mundial realmente está sendo retomado?; d) se houver um boom das commodities, ele vai contaminar as softs também?; e) o excesso de emissão de dólar vai trazer inflação nos EUA, aumento da taxa de juros e, em seguida, um estouro da bolha? (veja logo a seguir); f) quem vai comprar os 220.000 lotes que os fundos possuem, caso eles decidam liquidar a posição?; g) quem vai receber açúcar na entrega da próxima semana? A mesma trading do início desse comentário?; h) E se ela entregar? Não seria uma contradição do próprio relatório?. Os baixistas roem as unhas.

Evidente que posso estar completamente equivocado acerca da trajetória que o mercado está tomando. Não terá sido a primeira vez. No entanto, se o processo decisório na usina passasse por mim eu continuaria fixando açúcares para as próximas safras aproveitando os preços remuneradores em reais por tonelada. Se houver ainda dúvida, compraria múltiplos lotes de calls (opções de compra) out-of-the-money (opções fora-do-dinheiro) com preço de exercício ao redor de 19 centavos de dólar por libra-peso. Uma put (opção de venda) sintética, no fim do dia. Deixar de fazer pode ser uma Roleta Russa.

A Roleta Russa é um jogo em que os participantes colocam apenas uma bala no tambor do revólver, que é girado e fechado de modo que eles desconhecem a posição do projetil no cilindro. Em seguida, os jogadores apontam a arma para a própria cabeça e puxam o gatilho, correndo o risco de morte caso a bala esteja na posição engatilhada. Estatisticamente, a chance de sucesso (ou sobrevivência) é de 83.33%.

Chances de sucesso são muitas vezes – e mormente nesse exemplo – pontuais. Isto é, precisam ser aproveitadas naquele exato momento. Não é porque um evento tem chance de sucesso alta que podemos continuar apostando indefinidamente. Se você brincar de Roleta Russa ainda que com essa vantagem probabilística, em quatro rodadas tem mais de 50% de chance de ter os miolos perfurados. Se você, por analogia, perde na maior parte das vezes as oportunidades que o mercado lhe mostra, pode se machucar.

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Michael Burry é aquele médico americano que também virou investidor e foi quem previu a bolha de 2008 com a crise do subprime, uma forma de crédito hipotecário criada no mercado imobiliário americano focado nos tomadores de crédito que representavam maior risco. Partiu-se da hipótese que juntando vários desses créditos individuais de risco em tranches maiores, o risco se diluía e o papel se tornaria mais rentável.

A crise fez desaparecer num estalar de dedos empresas que até então eram nomes de respeito no mercado mundial como os bancos de investimento Lehman Brothers (perdeu 691 bilhões de dólares), Bear Sterns, a seguradora AIG, para mencionar alguns. Burry apostou contra a bolha e o fundo que administrava então deu um retorno de quase 500% aos seus acionistas em pouco menos de oito anos. O estresse desse período fez com que Burry encerrasse o fundo assim que liquidou suas exitosas posições. Caso você queira saber a história toda, veja o filme “A Grande Aposta” baseado no livro de Michael Lewis, autor inúmeras vezes citado em nossos comentários.

Burry prevê que uma nova crise se avizinha, “vai ser bem pior do que a de 2008”. Uma das inconsistências que ele vê é o fato que em um ano de pandemia o mercado acionário americano continua em alta, basicamente em função do excesso de dinheiro criado (injetado pelo governo) desde a pandemia. Dólares sem lastro que vão criar inflação em dólar logo adiante. Ele acredita que o mercado acionário está vivendo uma bolha e estamos nos encaminhando para um novo colapso.

Como não sabemos o que pode acontecer, o melhor a fazer é proteger a empresa contra eventos de cauda que podem comprometer o resultado (como falamos aqui no comentário há algumas semanas http://archerconsulting.com.br/artigos/artigo9772/).