Safra alcança marca histórica

Sob condições normais de clima, cenário pouco habitual nos últimos ciclos agrícolas, a safra brasileira de grãos tende a superar uma marca histórica no ano agrícola 2022/23, alcançando entre 300 milhões e 310 milhões de toneladas, nas projeções de analistas técnicos e consultores do setor. Esse número já poderia ter sido registrado na safra 2021/22 observa André Pessoa, CEO da Agroconsult, mas a produção foi atingida em cheio pelo fenômeno climático La Niña, que frustrou as perspectivas de produção. Ainda assim, o país está concluindo a colheita de cerca de 272,5 milhões de toneladas, cerca de 6,7% maior do que na safra 2020/21, no quarto recorde consecutivo nas séries de dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

Tem sido um ano “bastante complexo para o setor”, afirma Alexandre Rangel, sócio-líder de consultoria para o setor de agronegócio da EY. Além do clima desfavorável, sobretudo na região Sul e no Mato Grosso do Sul, o setor foi sacudido pela escalada nos custos de produção, em ritmo superior à valorização experimentada pelos preços pagos aos produtores, numa tendência agravada pela guerra entre Rússia e Ucrânia e suas consequências nas cadeias de produção de insumos e máquinas, já afetadas desde 2020 pela pandemia da covid-19, e ainda por turbulências no câmbio. O aumento dos custos de capital, com a alta de juros nos mercados interno e externo, apresenta-se como outro fator de pressão a afetar a área, contam Felippe Serigati, do Centro de Estudos do Agronegócio da Fundação Getulio Vargas (FGVAgro), e Guilherme Bellotti, do Itaú BBA.

Depois de ponderados todos os indicadores, no entanto, apontam ambos, o balanço geral continua positivo para o setor, que tem conseguido enfrentar aqueles gargalos e preservar suas margens, como reflexo de um balanço global ainda apertado entre oferta e demanda de commodities. As margens de rentabilidade das principais lavouras, na verdade, retornam a seus níveis de normalidade, depois de alcançarem resultados “espetaculares” nos dois últimos ciclos, na descrição de Bellotti.

Ponto de inflexão
O setor resiste num momento em que a geopolítica global enfrenta um “grande ponto de inflexão”, a caminho da consolidação do que parecem ser dois blocos hegemônicos, o primeiro formado pelas principais economias ocidentais e o segundo liderado pela China, em aproximação com a Rússia, na descrição de Serigati. A enorme e necessária A enorme e necessária injeção de liquidez, depois da crise de 2008/09, durante a pandemia trouxe como desafio a necessidade de reverter os excessos e enfrentar uma inflação que ronda níveis históricos, que já vem provocando desaquecimento da economia mundial, com efeitos sobre os preços das commodities, que compõem “um universo que não é homogêneo” diz Serigati. Na sua visão, os mercados atravessam um processo de “reprecificação” de ativos, que afeta mais as commodities energéticas e metálicas e menos as commodities agrícolas, setor que apresenta “fundamentos muito melhores”. Segundo ele, “apenas o algodão tem operado em queda”, destaca.

O balanço entre oferta e demanda tende a se manter apertado ao longo do ciclo 2022/23, com baixos estoques de soja e de milho, aponta Bellotti. Nas estimativas do Itaú BBA, tomando como base dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês), os estoques de passagem da soja devem se aproximar de 98 milhões de toneladas, perto de 26% a demanda global esperada, algo como três meses de consumo, abaixo dos 33% registrados na safra 2018/19. No caso do milho, espera-se um leve recuo dos estoques de 312 milhões para 308 milhões de toneladas entre os ciclos 2021/22 e 2022/23, o suficiente para abastecer praticamente o mercado por três meses.

O aumento nos custos, afirma Rangel, da EY, deve vir acompanhado por forte demanda global por grãos e proteína animal, com impacto sobre as exportações do agronegócio, que atingiram novo recorde no primeiro semestre deste ano. Comparadas com o mesmo período de 2021, sob efeito da valorização das commodities no período, as vendas externas do setor cresceram 29,4%, subindo de US$ 61,3 bilhões para US$ 79,3 bilhões, resultado de uma elevação de apenas 1,5% nos volumes embarcados e incremento de 27,5% nos preços médios de venda, com altas para as cotações da soja, do milho e das carnes, entre outros produtos.

Aumento de custos
Na média estimada pelo coordenador de produção agrícola da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Maciel Silva, os custos operacionais de produção de soja subiram 45%, com salto de 68% para o milho, cultura que utiliza volumes maiores de fertilizantes nitrogenados. Ao mesmo tempo, enquanto os preços da soja subiram em média 10% entre maio de 2021 e o mesmo mês deste ano, a saca de milho ficou em torno de 13% mais barata, reforçando os indicativos de “margens bastante estreitas”, diz.

O suprimento de fertilizantes, ainda sujeito a incertezas, parece assegurado a se considerar o aumento de 16,3% acumulado pelas importações no primeiro semestre, saindo de 16,6 milhões para 19,4 milhões de toneladas nos dados do Ministério da Economia. Mas a um custo mais salgado, com os preços médios pagos pelo país a seus fornecedores saltando 140,7%, o que levou a um incremento de quase 180% nos valores importados, de US$ 4,59 bilhões para US$ 12,84 bilhões.

Ainda assim, os resultados continuariam positivos, dizem Bellotti e Marcela Marini, analista do departamento de Pesquisa e Análise Setorial do Rabobank Brasil. “O cenário de margens operacionais para a safra 2022/23 aponta para números positivos e até mesmo acima da média dos últimos cinco anos, porém abaixo do que observamos nas duas últimas safras”, diz Marini. De acordo com ela, “o bom resultado obtido durante as últimas safras associado a um cenário positivo para 2022/23 incentivará o produtor a aumentar a área plantada para a próxima safra”, estimando elevação de 4,5% da área plantada de soja.

As projeções mais recentes do Itaú BBA, ressalta Bellotti, indicam margens de R$ 3.552 e de R$ 2.933 por hectare, da porteira para dentro, respetivamente para soja e para o milho na safra 2022/23, com redução de 41,3% e de 17,4% em relação ao ciclo passado. Os resultados projetados pela instituição contemplam preços médios relativamente mais baixos para as duas culturas e avanços de 55,7% e de quase 10% para os custos agrícolas da soja e do milho. “As margens de lucratividade da soja, na verdade, voltam ao padrão observado há três anos, numa estimativa que não inclui custos de arrendamento”, afirma Pessoa, da Agroconsult.

Pessoa identifica uma “grande mudança” na composição dos resultados da agricultura nos últimos três anos, com contribuição mais efetiva do milho de segunda safra. Até então, o chamado “milho safrinha” praticamente não contribuía para o resultado da atividade, mas ajudava a diluir custos fixos e agregava ganhos agronômicos relacionados à rotação de culturas. “Nos três últimos ciclos, os preços mais altos do milho permitiram rentabilidades iguais e mesmo superiores à da soja, numa mudança que veio para ficar.”

Valor agregado
Num olhar de mais longo prazo, Pessoa acredita que o agronegócio deve continuar avançando, em termos de valor agregado, contribuindo para atenuar a tendência prolongada de baixo crescimento da economia como um todo. No ano passado, segundo levantamento realizado em conjunto pela CNA e pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq/USP), o Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio representou 27,55% do PIB total brasileiro, na contribuição mais elevada desde 2003.

A pecuária tende a enfrentar uma fase de baixa relativa nos preços do setor entre 2023 e 2024, depois de dois anos de valorização do bezerro e retenção de vacas pelos produtores, avalia Rafael Ribeiro, assessor técnico da Comissão Nacional de Pecuária de Corte da CNA. Segundo ele, os abates de novilhas, que haviam caído 13,6% e 17,2% em 2020 e 2021, subiram 11,4% no primeiro trimestre deste ano, sinalizando aumento na oferta de animais. Ao longo deste ano, no entanto, as condições de mercado experimentaram melhora em maio e junho frente a março e abril, quando os preços estiveram mais “frouxos” e os custos mais salgados. Nas suas contas, no primeiro ciclo de confinamento, entre maio e julho, o equilíbrio entre preços e custos foi mais delicado.

O confinador pagou em torno de R$ 3,7 mil por boi magro, enfrentou uma diária de R$ 24 por cabeça no confinamento e recebeu R$ 325 por arroba pelo animal terminado para abate, embolsando um lucro de R$ 255,20 por cabeça. No segundo giro, a ser iniciado em agosto e finalizado entre novembro e dezembro, o custo do boi magro elevou-se para R$ 3.841, mas a diária baixou para R$ 21,50, num reflexo de custos mais baixos para milho e farelo de soja, e o preço de venda do boi terminado subiu para R$ 337 por arroba. O lucro final, em consequência, deve subir perto de 12%, para R$ 565 por cabeça.

As exportações têm dado suporte aos preços no mercado doméstico, embora surjam dúvidas em relação à capacidade de absorção de novos aumentos pelo mercado doméstico diante da renda menor das famílias, analisa César Castro Alves, consultor de agronegócio do Itaú BBA. Com impulso da China, no caso da carne bovina, e a saída da Ucrânia do mercado de frango, abrindo espaço para exportadores como o Brasil, na descrição do consultor, as vendas externas do complexo carnes apresentaram forte incremento no primeiro semestre, crescendo 35,3%, de US$ 9,04 bilhões para US$ 12,23 bilhões.

A alta de 24,6% nos preços médios na exportação, conforme o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), impulsionou aquele resultado, porque os volumes embarcados registraram variação de 8,6% ante os primeiros seis meses de 2021, saindo de 3,75 milhões para 4,07 milhões de toneladas. As previsões de Castro para os embarques neste ano apontam altas próximas a 20% para carne bovina, somando 2,768 mil toneladas de carcaça equivalente, e de 6% para o frango, para um total de 4,729 milhões de toneladas, mas recuo de 5% nas exportações de carne suína, o que limitaria as vendas a 1,06 milhão de toneladas. Wagner Yanaguizawa, analista do departamento do Rabobank Brasil, antecipa recorde nas vendas externas de frango, num cenário de oferta global limitada, com destaque para as compras dos Emirados Árabes e do Japão.

O ajuste no plantel chinês, que recompôs a criação de suínos em bases mais industriais desde a crise gerada pela peste suína africana, levou a uma retração de 38,4% nas compras da carne suína brasileira pelo país oriental, pressionando os preços para baixo aqui dentro, afirma Ribeiro. “O preço do quilo vivo de suíno chegou a ficar abaixo do preço do frango em determinado momento, causando prejuízos entre R$ 1 a mais de R$ 3 por quilo para os criadores não integrados”, observa. O resultado foi um “forte descarte de matrizes entre março e maio deste ano e produtores saindo da atividade”. A produção independente de suínos responde por 20% a 25% do mercado brasileiro.

Açúcar e etanol
Os mais recentes relatórios da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica) sobre a evolução da safra 2022/23 sugerem que a recuperação esperada para a produção de cana na região Centro-Sul pode ser menor do que a esperada, avalia Andy Duff, chefe da área de pesquisa e análise setorial do Rabobank.

As estimativas correntes antecipam a moagem em torno de 545 milhões de toneladas de cana na região Centro-Sul em 2022/23, o que corresponderia a um avanço próximo a 4% frente a 523,4 milhões de toneladas processadas na safra 2021/22. Comparada ao ciclo 2020/21, a moagem havia sofrido queda de 13,5%, com 82 milhões de toneladas a menos.

Restando em torno de dois terços da safra deste ano a serem colhidos, os dados da Unica para o período entre abril e junho deste ano mostram queda de 11,7% na produção, baixando de 212,42 milhões em igual período da safra passada para 187,61 milhões de toneladas, redução de 24,8 milhões de toneladas. Na avaliação de Duff, a disponibilidade de cana na região continua “bem abaixo da capacidade de moagem”.

As mudanças no regime tributário no setor, com redução e mesmo isenção temporária de impostos e contribuições sobre os combustíveis, na sua visão, deixam “vários pontos de interrogação”, a começar pela incerteza em relação ao impacto sobre os preços e o tempo de duração daquelas medidas, num cenário conturbado pela guerra, pela perspectiva de recessão nas maiores economias globais e pela proximidade das eleições, que tendem a dar volatilidade ao câmbio. “Com todo esse cenário novo e a falta de clareza”, adiciona Duff, “nem os preços do açúcar e nem os do etanol estão em níveis baixos.”

 

Valor Econômico