“A cana-de-açúcar é uma fonte de energia renovável cujo potencial está agora passando a ser reconhecido como tal, tanto por nações industrializadas como essencialmente agrícolas. Ela é a mais elegante coletora viva dos raios solares e que opera 24 horas por dia durante o ano todo. Mais do que qualquer outra planta, a cana-de-açúcar aperfeiçoou a arte de colher a luz radiante do sol e armazená-la na forma de massiva quantidade de sólidos fermentáveis e fibra. Nas regiões tropicais ela tem sido cultivada por séculos como fonte de sacarose.
Embora menos produtiva fora dos trópicos, ela tem sustentado indústrias de açúcar em latitudes mais altas do Norte e do Sul, onde o ciclo de crescimento dura apenas de 7 a 10 meses. Soa um pouco irônico o fato de muita ênfase ser colocada em sacarose, ignorando o restante da biomassa que ela produz. A cana-de-açúcar tem a tendência natural de produzir fibra ao invés de sacarose; de fato, a maioria das espécies e subespécies de Saccharum se destacam em produzir novos tecidos e pouco ou nenhuma capacidade de produzir sacarose. Mesmo os híbridos cultivados têm a tendência de utilizar seus açúcares como suporte para os processos de crescimento quando água e nutrientes são devidamente supridos. Historicamente, a fibra dessas plantas tem sido subutilizada, ou mesmo não utilizada.”
O texto acima é uma tradução ipsis litteris da introdução de uma apresentação feita por Alex G. Alexander, ao iniciar sua cruzada durante toda a década de 80 do século passado para mudar o paradigma, vigente milenarmente, de que a cana-de-açúcar serve apenas para produção de açúcar. Ele atuava em Porto Rico, como fisiologista de cana-de-açúcar e, ao mesmo tempo em que o Brasil já estava com seu Proálcool em plena ascensão (embora, naquela época, ainda sem atinar exatamente para o lado essencialmente energético da planta), levantou a bandeira da cana energia e a potencialidade desse novo enfoque. Naquela época, o mundo se surpreendia com o embargo do petróleo e a guerra do Golfo Pérsico, com consequentes efeitos em toda a economia.Particularmente, o setor açucareiro se defrontava com baixo preço internacional do açúcar, abaixo do custo de produção em muitos países, colocando em sério risco financeiro as empresas açucareiras. O Brasil tinha encontrado uma alternativa interessante com o seu Proálcool, mas essa não era a situação dos demais países. No caso de Porto Rico, a associação do alto custo de produção com baixa produtividade tinha tornado as indústrias altamente deficitárias e, consequentemente, altamente subsidiadas, uma situação insustentável que Alexander tentou em vão mudar. O resultado foi que as empresas foram fechando uma a uma, até que a última encerrou sua atividade em 2000.
A crise pela qual o setor sucroalcooleiro brasileiro está passando atualmente, em certa medida, se assemelha àquela, mas, obviamente, é distinta por várias razões, a principal sendo a produção alternativa de etanol e, em algumas empresas, a cogeração de eletricidade, além da venda de bagaço. Mas absolutamente não é uma situação tranquila, pois as crises têm sido recorrentes e certamente se sucederão no futuro.
Na base, tudo se resume a um fator: produtividade da lavoura. Sem produtividade nos canaviais, não haverá remédio, mesmo milagroso. Mas se a produtividade se pode resolver com tecnologia, a solução urge, tem de vir já e agora. Uma grande gama de tecnologia agrícola e gerencial está à disposição, e atualmente muito se discutem todas elas, e as empresas têm se esmerado em aplicá-las.
Com isso conseguirão bom desempenho das lavouras, porém não há o que se iludir; se chegará a um limite não muito superior ao atual, pelo menos em se considerando a condição normal sem irrigação, que é a grande maioria dos canaviais brasileiros. Essa afirmativa deve soar descabida, mas tem fundamento no limite biológico resultado do tipo de planta exigido tradicionalmente pela agroindústria da cana-de-açúcar, como se explicará adiante.É uma trava biológica que efetivamente limita a produtividade. Então, expliquemos como e por que ocorre essa trava. Como Alexander se esmerou em explicar, o armazenamento de sacarose como produto da fotossíntese pelo gênero Saccharum é incidental. Nesse gênero, e em outros relacionados, apenas a espécie S. officinarum o faz com eficiência, enquanto outras armazenam pouco ou nada.
Aliás, no reino vegetal, também o armazenamento de sacarose como fonte de energia é uma raridade; normalmente, a reserva energética ocorre na forma de amido e ácidos graxos (sementes), ou de açúcares simples (frutas). Para armazenar sacarose, a planta produz células parenquimatosas, que são os recipientes onde a sacarose é armazenada. Como qualquer recipiente, essas células têm a capacidade de armazenamento de sacarose determinada.
Nas variedades comerciais mais ricas da atualidade, essa capacidade atingiu o limite físico-osmótico possível. Os produtos da fotossíntese na cana-de-açúcar são basicamente sacarose e fibra, suplementados por pequenas quantidades de outros solutos. Ocorre que, tradicionalmente, a indústria estabeleceu que o teor de fibra não pode ser alto, com o valor máximo em torno de 14%.
Em tal condição, o teor de sacarose mal chega a 16%, porque o total de matéria seca na cana-de-açúcar não pode ser superior a 30%, já que os restantes 70% devem ser água. Com o teor de fibra no limite inferior de 10% (abaixo disso, não há possibilidade de ser uma planta comercial), a concentração de sacarose pode chegar próximo ao limite suplementar de 18%, que é o que ocorre nas variedades ditas “ricas” (o restante 2% são outras substâncias carbonadas). Portanto o que ocorre biologicamente é um balanço entre teor de fibra e de sacarose. Figurativamente, uma gangorra representa bem esse balanço: se um lado sobe, o outro desce. E a altura do ponto de apoio da gangorra limitando a subida da sacarose é a fibra.
Como se disse, o limite de sacarose é biológico, mas o de fibra não; ele é ditado pela indústria. Alega-se que fibra em valor acima daqueles torna a extração muito ineficiente. Há também uma outra razão para uma indústria tradicionalmente açucareira: se o teor de sacarose for baixo, a pureza também é baixa, o que compromete uma eficiente fabricação de açúcar de qualidade.
Para que uma variedade atinja aquele ponto de equilíbrio da gangorra, a composição genômica das variedades também deve chegar a um balanço: aproximadamente 80-85% de genoma de S. officinarum e 15-20% de S. spontaneum. Essa foi a proporção adequada a que se chegou quando, ao início do século XX, se criaram as primeiras variedades modernas de cana-de-açúcar mais resistentes a doenças e a condições ambientais desfavoráveis e que, ao mesmo tempo, atendiam aos requerimentos agrícola e industrial.
Em verdade, aquela proporção foi incidental, mas não cabe aqui entrar em detalhes. Pois bem, aquela proporção é que é a trava da produtividade no campo. Se se aumentar o genoma da primeira espécie, pode-se até aumentar o teor de sacarose, porém a planta se torna muito sensível a condições ambientais de cultivo (naturais ou antrópicas), ou seja, se torna menos resiliente, levando a uma menor produtividade; por outro lado, se o genoma da segunda espécie for aumentado, aumentar-se-á o teor de fibra para além do que as indústrias toleram. Então, a conclusão a que se chega é que a trava mesmo é o teor de fibra. Se a trava for removida, ou seja, se não se impuser um limite ao teor de fibra, a planta, além de se tornar mais resiliente, ou seja, menos sujeita aos efeitos ambientais, pode manifestar um outro fenômeno genético muito importante, o vigor de híbrido.
Esse é um fenômeno em que os filhos manifestam vigor maior do que de qualquer um dos pais. Ele foi muito utilizado em outras culturas (o milho é um exemplo clássico) e foi um dos pilares da Revolução Verde, isto é, permitiu mais do que dobrar a produtividade das culturas de grãos (genética e manejo agrícola).
Na cana-de-açúcar, esse vigor se manifesta de forma muito marcante, ou seja, do cruzamento entre duas espécies, há a possibilidade de ocorrerem filhos extremamente vigorosos, com o dobro ou mais de produtividade de biomassa. Contudo, no seu melhoramento genético, esse recurso só foi utilizado minimamente porque a trava de fibra antes mencionada levava os melhoradores a descartarem os indivíduos mais vigorosos, porque eles justamente ultrapassavam o limite percentual de fibra.
Por exemplo, clones com 15% a 16% de fibra são de 20% a 25% mais produtivos, mais resilientes, e possibilitam uma a duas socas a mais porque brotam melhor. Porém tais variedades não são tradicionalmente aceitas porque são ditas “muito pobres”. Por essa razão, nos programas de melhoramento genético, tais clones são, invariavelmente, descartados. Num momento em que todos almejam a produtividade de três dígitos, a adoção dessas variedades tornaria essa meta factível.
Ademais, do ponto de vista de uma indústria sucroenergética, aquele preconceito não se justifica, pois tais variedades poderiam ser alocadas nos ambientes menos favoráveis, assim otimizando as variedades “ricas”. Já se o teor de fibra for aumentado ao nível de 20%, o potencial de produtividade será de duas a três vezes maior, com o teor de sacarose diminuindo apenas de 20% a 25%, ou seja, a produção de açúcar por unidade de área será maior do que a da cana convencional, com a vantagem adicional da produção de bagaço muito superior.
Nesse caso, a trava dos 30% de sacarose mais fibra é rompida, podendo chegar a até 40%. É um ganho extraordinário, que nem mesmo na propalada Revolução Verde se conseguiu. É bem verdade que o caldo dessa nova cana, a cana energia, não é adequada para a produção de açúcar de qualidade, porém se presta muito para a produção de etanol. Essa cana energia propicia a produção de até mais etanol por unidade de área cultivada do que a cana convencional, com a vantagem adicional de, pelo menos, quatro vezes mais bagaço, resultando, ao final, uma rentabilidade financeira substancial.
Atualmente, estão sendo implantados alguns projetos de etanol de segunda geração (2G), ou seja, a produção de etanol a partir dos materiais fibrosos, no caso da cana-de-açúcar, de suas folhas e do bagaço. Esse etanol somente será competitivo se baseado também nesse novo tipo de cana, a cana energia, com produção simultânea de etanol 1G e 2G, conforme conclusão a que se chegou um estudo do BNDES. Com essa cana energia, seria possível o País atingir a meta acordada na COP21, sem nenhuma ampliação de área de terra, e sim apenas substituindo aquelas hoje plantadas com cana-de-açúcar, destinada à produção de etanol. Seria o Proálcool II, ou, mais apropriadamente, um Proenergia.
Pelo lado das empresas, a cana energia, além de poder contribuir muito para elas saírem do “vermelho”, poderá ainda estimulá-las a alçarem voos maiores, transformando-se em biorrefinarias para produção, não apenas de biocombustível e energia elétrica, mas diversos outros produtos químicos, pasta de celulose, aglomerados, fármacos, etc. Além disso, se a cana convencional possui uma série de qualidades em termos ambientais, a cana energia tem ainda mais, porque a sua maior produtividade aumenta a sua “pegada de carbono” e, na parte agrícola, apresenta inúmeras vantagens ambientais, diretas e indiretas. Mas isso é matéria para um outro artigo.
Bibliografia:
1. Alexander, A.G. 1980. The potentials of sugarcane as a renewable energy resource for developing tropical nations. In King, A.; Cleveland, H. (eds.). Bioresources for Development. The Renewable Way of Life. New York, Pergamon Press. p. 223-236.
2. Alexander, A.G. 1985. The Energy Cane Alternative. Amsterdam, Elsevier.
3. Matsuoka, S. 2017. Free fiber level drives resilience and hybrid vigor in energy cane. Journal of Scientific Achievements, 2:1-35.
4. Denison RF. Darwinian Agriculture. How Understanding Evolution Can Improve Agriculture. Princeton, NJ: Princeton University Press. 2012; 258p.
5. Matsuoka S, Arizono H. Avaliação de variedades pela capacidade de produção de biomassa e pelo valor energético. STAB, Açúcar, Álcool e Subprodutos, 1987; 6(2): 39-46.
6. Matsuoka, S. et al. 2014. Energy cane: Characteristics, development, and prospects. Advances in Botany. 2014; 1-13.
7. Milanez, A.M. et al. 2015. De promessa a realidade: como o etanol celulósico pode revolucionar a indústria de cana-de-açúcar. Uma avaliação do potencial competitivo e sugestões de política pública, Rio de Janeiro: BNDES Setorial, no. 41. 2015; p. 237-94.
Artigo publicado originalmente na Revista Opiniões, edição de Abril/ Junho de 2017.
Sizuo Matsuoka é cientista da Vignis S/A